Lavagante – Análise
Estrear “Lavagante” a 2 de outubro — precisamente no dia em que se evocam os 100 anos de José Cardoso Pires — é um gesto de provocação cultural e de justiça poética: Cardoso Pires volta ao centro da mesa, servido em cinema por Mário Barroso, temperado pela memória de António-Pedro Vasconcelos e cozinhado na panela sempre a ferver de Paulo Branco.
Há datas que não são coincidência: são conspirações felizes. Estrear “Lavagante” no centenário de José Cardoso Pires é daquelas jogadas que parecem saídas de uma das suas narrativas, cheias de ironia e melancolia. Porque este filme, realizado por Mário Barroso, é mais do que uma adaptação de um texto literário esquecido, é um reencontro com a memória, com a ditadura, com o amor e a traição, e com um país que viveu demasiado tempo com medo.
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Quando a literatura cozinha no lume brando do cinema
O ponto de partida é sedutor: “Lavagante, Encontro Desabitado”, uma novela que Cardoso Pires escreveu nos anos 1960, perdida nos papéis do autor até ser publicada em 2008, também pelo saudoso editor Nelson de Matos. Uma história de amor e de enganos, com a repressão salazarista a pairar como fantasma. A repressão estudantil de 1962 na Cidade Universitária é o pano de fundo. O medo, a censura, a PIDE e o apetite do poder são o recheio.
Três homens e um lavagante: Pires, Vasconcelos e Barroso
António-Pedro Vasconcelos apaixonou-se pelo pequeno romance e escreveu o argumento. Era um projeto que queria filmar e que, em vida, não conseguiu concretizar. Morreu em março de 2024, mas o cinema tem destas coisas: cumpre promessas a título póstumo e já não é a primeira vez. Paulo Branco agarrou o projeto como produtor e Mário Barroso assumiu a realização e a fotografia. Resultado? Uma obra que é ao mesmo tempo filme, homenagem e ajuste de contas com a História.
Lisboa noir 1962: entre cafés, sombras e delações
Barroso filma como sempre com a precisão de um relojoeiro. A luz e a atmosfera são as suas armas. Lisboa de 1962 aparece como cenário e personagem, envolta em sombras, ruas estreitas, cafés onde se conspirava e bares de praia onde o lazer escondia delações. O mar, sempre o mar, funciona como metáfora de país: ora vasto e luminoso, ora negro e ameaçador.
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Amor com a PIDE à espreita
Mas não nos enganemos: “Lavagante” não é só uma memória política. É sobretudo um jogo psicológico. Cecília (Júlia Palha), estudante de Arquitetura, é o isco perfeito. Daniel (Francisco Froes), jovem médico opositor ao regime, é a presa. À volta, orbitam personagens maiores que a vida: da brutalidade insinuante da polícia política à frieza calculista dos que sobrevivem adaptando-se. A metáfora do lavagante — o animal que engorda a presa até a devorar — dá título e sentido a tudo.
Um elenco que morde e não larga
O elenco brilha no preto e branco. Júlia Palha consegue o impossível: ser ao mesmo tempo sedutora e perturbadora, musa e armadilha. Francisco Froes constrói um Daniel dividido entre a paixão e a consciência política. Nuno Lopes, Diogo Infante e Leonor Amorim, acrescentam densidade. Até os papéis secundários são filmados com a dignidade de quem pertence a uma tragédia maior.
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Cinema como manual de resistência
E há o subtexto: “Lavagante” é também um manual de resistência para os espectadores mais novos: um filme ‘duro, para ajudar os jovens a perceberem o que foi o fascismo’. E, em tempos de amnésia histórica e revisionismos perigosos, o cinema precisa mesmo de voltar a lembrar que liberdade não caiu do céu.
A lentidão literária como força
Esteticamente, Barroso arrisca um pouco na densidade literária. Não tem medo de diálogos longos, de pausas, de atmosferas que se arrastam. Vai irritar quem só procura ritmo e ação. Mas é justamente nessa demora que o filme encontra a sua força, nos silêncios e naquilo que não é dito, mas é entendido. É uma adaptação que não pede desculpa por vir da literatura. Assume-se mesmo literária, lenta, reflexiva, mas nunca maçadora.
Uma mariscada cinematográfica que fica na memória
O resultado é um filme que não é perfeito, mas quem disse que a perfeição interessa? Mas é um dos melhores sobre os tempos da ditadura. Interessa, sim, a coragem de filmar Cardoso Pires no século XXI. Interessa homenagear António-Pedro Vasconcelos com o cinema que sempre quis fazer e não conseguiu: político, apaixonado, ambicioso, para o grande público. Interessa, sobretudo, provocar. Porque “Lavagante” não é um prato fácil, custa um pouco a descascar. Mas é intenso, amargo e deixa esse sabor na boca.
JVM
Lavagante — Análise
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José Vieira Mendes - 80
Conclusão:
“Lavagante” de Mário Barroso é um filme raro no cinema português: nasce da literatura, passa por um sonho interrompido e chega ao ecrã como objeto de memória coletiva. Não é cinema para todos, mas é um cinema necessário e oportuno. No centenário de José Cardoso Pires, Mário Barroso, António-Pedro Vasconcelos e Paulo Branco servem-nos um ‘banquete cinematográfico’ que não é de digestão rápida, mas que ficará para sempre nas nossas memórias como uma história de amor em tempos de PIDE. Desta não têm desculpa para não irem ver um bom filme português que tem a ver com a nossa memória histórica e colectiva.
Overall
80User Review
( votes)Pros
O melhor: A atmosfera visual de Mário Barroso, a preto e branco entre a luz e a sombra. Júlia Palha, magnética, ambígua, cruel. A coragem de falar do fascismo sem floreados nem simplificações. O gesto simbólico de estrear no centenário de Cardoso Pires.
Cons
O pior: O ritmo pode afastar quem procura cinema ‘rápido’. A densidade literária pode soar hermética a alguns espectadores. Por vezes, o filme parece mais preocupado em homenagear do que em surpreender.