"O Convento" | © MOTELX

MOTELX ’22 | O Convento, em análise

Nesta edição do MOTELX, o festival dedica a secção Quarto Perdido às contribuições do produtor Paulo Branco para o cinema de terror em Portugal. “O Convento” de Manoel de Oliveira é uma das obras exibidas, tendo tido a sua estreia original em 1995. A fita competiu no Festival de Cannes antes de chegar aos cinemas lusitanos, onde se tornou a produção portuguesa mais popular do ano. John Malkovich, Catherine Deneuve e Luís Miguel Cintra protagonizam este drama poliglota.

Baseado no romance “As Terras Do Risco” de Augustina Bessa-Luís, “O Convento” centra-se em torno de um casal Francês em viagem por territórios portugueses. De Paris à Serra da Arrábida, Michael Padovic e sua esposa, Hélène, partem em busca de documentos capazes de provar uma teoria literária – que William Shakespeare descendia de sangue espanhol e não inglês. A pesquisa leva-os até ao convento titular, onde Michael tenta desencantar suas preciosas provas por entre um arquivo envolto em sombra e mistério. Só que nem tudo é o que parece e a simples narrativa burguesa depressa se metamorfoseia em algo mais alegórico.

o convento critica motelx
© MOTELX

Pronto a receber o casal estrangeiro está Baltar, o guardião do convento e figura envolta em iconografia do oculto. Note-se como sua introdução é feita defronte de um pentagrama suspenso qual tapeçaria ritualista, um pano de fundo ominoso que logo nos indica as ambições metafóricas dos artistas. A Michael, Baltar recomenda a ajuda de Piedade, jovem moça arquivista do convento – em pouco tempo, o professor cairá na tentação do amor adúltero. Ao mesmo tempo, melífluos discursos em francês puxam Hélène para o estranho homem, um gesto no ponto médio entre o feitiço macabro e a sedução da carne.

Se as muitas alusões ao texto de Goethe não sublinhassem isso mesmo, a imagética conjurada por de Oliveira e o diretor de fotografia Mário Barroso seriam suficientes. Baltar é um Mefistófeles do século XX, quiçá uma manifestação plena de Satanás na terra dos homens. Como tal, todo ele é um apelo a acordos faustianos e negócios da alma. Num paradigma mais bíblico que romântico, o fruto do conhecimento proibido é a maçã com que esta serpente seduz o Adão e Eva nesta Arrábida feita Éden. Mas quais são as suas verdadeiras intenções? Qual é a sua função nesta narrativa? Vemos um conto material ou somente alusões metafísicas?

Muitas são as questões levantadas por este filme que tanto peca pelo óbvio como pelo obscuro. Há quem acuse “O Convento” de ser aborrecido e se mover a ritmo glacial, mas essas são críticas comuns à obra de Oliveira por regra geral. Para quem esteja disposto a deixar-se levar pelos ritmos do celuloide, a fita revela-se uma fascinante subversão de expetativas que tanto apela a códigos classicistas como à sua renegação. Da farsa ao melodrama sussurrado, do tórrido romance que nunca passa da discussão intelectual até ao postal animado da Serra mística, o filme veste muitos figurinos e nenhum deles permanece posto por muito tempo.

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Considerar “O Convento” num contexto em que se celebra o cinema de terror reforça esta ideia de um filme escorregadio que foge à categorização definitiva. Há estilizações que recordam o modelo antigo da casa assombrada e a cenografia decerto puxa para essas leituras. Imagéticas ocultistas enquadram Baltar como já foi apontado, mas o visual fantasmagórico transcende essa figura. Veja-se o arquivo sempre coberto por uma mortalha de sombras espessas ou um altar despido de azulejos qual templo católico reduzido a cova pagã. Sentimos a força demoníaca, a presença do mal puro, mas, ao mesmo tempo, não a conseguimos cristalizar além desses espaços marcados.

Muitos aplausos se fazem à fotografia de Barroso, mas a música de Krishna Levy também merece apreciação especial. Apelando a sonoridades típicas de um terror à Italiana, as composições sinfónicas do filme parecem tiradas de algum giallo esquecido, transplantadas desse género lúrido para um paradigma de cinema ascético. O contraste de ideias perturba, transtornando equilíbrios de forma e tom. Aliando-se esta dissonância aos temas primordiais do argumento resulta numa estranha dinâmica – “O Convento” é um filme pequeno, mas também gigantesco, sobre tudo e sobre nada, assombrado sem fantasmas.

Não obstante estes aspetos formalistas, “O Convento” pertence a uma secção na carreira de Oliveira em que cinema e tradição teatral se justapõem no modo de encenação, especialmente a direção de atores. É o elenco que tem de suster o engenho do realizador, negociando tonalidades extremadas através de abordagens que nem sempre coerem. Como Hélène, Catherine Deneuve é a rainha do gelo tão amada do cinema gálico, enquanto John Malkovich salienta o maneirismo maniento de Michael Padovic. De forma importante, quase visceral, eles não parecem pertencer ao mundo imaginado do filme, estrangeiros até ao fim.

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Leonor Silveira, por seu lado, serve mais como iconografia do que caraterização, afirmando seu estatuto como suprassuma musa de Oliveira nestas últimas décadas do século XX. Com isso dito, a estrela do filme é o seu Mefisto lusitano – Luís Miguel Cintra no papel de Baltar. Novamente vemos um recorrer à teatralidade dos palcos transmutada em expressão cinematográfica, como se toda a Serra da Arrábida fosse emoldurada por um proscénio. Ele tanto alicia como repugna, seus sorrisos rasgados a máscara de um predador, sua piedade uma brincadeira falseada. Até hoje, Cintra é a melhor razão para ser ver “O Convento,” fita que, em análise final, fica aquém dos triunfos máximos desse homem que, para muitos, foi a cara do cinema português.

O Convento, em análise
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Movie title: O Convento

Date published: 9 de September de 2022

Director(s): Manoel de Oliveira

Actor(s): John Malkovich, Catherine Deneuve, Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, João Bénard da Costa, Heloísa Miranda, Gilberto Gonçalves

Genre: Drama, Mistério, 1995, 91 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO:

Não falta ambição a Manoel de Oliveira e seu “Convento.” Também não falta modéstia ou o desejo de reduzir questões cósmicas a melodramas burgueses de infidelidade e tentação. Entre o terror e o teatro, entre Goethe e Shakespeare, esta obra menor no cânone de Oliveira vinga pela prestação de Luís Miguel Cintra, pela fotografia belíssima e desconcertante acompanhamento musical.

O MELHOR: O Mefistófeles moderno, o som do giallo, a fotografia de postal corrompida pela força insidiosa do terror.

O PIOR: Quanto as figuras humanas existem enquanto veículos para ideias e nunca personagens. Tal abordagem pode resultar em grandes triunfos, mas há uma secura textual em “O Convento” que demanda melhor tracejamento psicológico. Ou isso ou o estilo devia ser reforçado, levado ao abstrato onde os temas prediletos do realizador podem existir além dos limites da carne.

CA

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