João Botelho | “Este filme é uma carta de amor à infância e à Paula Rego”
Em “As Meninas Exemplares”, o realizador português João Botelho, regressa à infância com Paula Rego a partir da obra da Condessa de Ségur.
João Botelho volta às salas — e ao país profundo — com “As Meninas Exemplares”, fantasia cinematográfica que cruza os livros da Condessa de Ségur com o universo visual de Paula Rego. Apresentado no LEFFEST 2025 e acompanhado por uma exposição de gravuras da artista, o filme parte agora em digressão por auditórios e cineteatros, numa espécie de cruzada íntima para voltar a pôr o público frente aos grandes ecrãs. Almoçamos com o João Botelho e conversamos sobre o filme, sobre as suas inspirações Condensa de Ségur, na obra da Paula Rego, sobre os seus fantasmas, mas sobretudo da experiência de ‘serviço público’, que é fazer circular “As Meninas Exemplares” pelo Pais inteiro.

Filhas e madrastas cruéis
“É um divertimento e uma homenagem à Paula Rego”, resume o João Botelho, convencido de que a infância continua a ser uma forma de resistência. A Sofia (Rita Durão), as Madalenas, as Camilas e as madrastas cruéis regressam ao cinema não como meninas bem-comportadas, mas como figuras de um tempo em colapso, presas entre a culpa, o desejo e a educação à base de castigo.
As leituras das irmãs
As primeiras memórias de João Botelho confundem-se com essas leituras. “As minhas irmãs eram mais velhas do que eu, era o que havia lá em casa. Aprendi a ler aos seis anos. Os primeiros livros que li foram estes, “As Meninas Exemplares”. Inquietaram-me, mas eu não percebia bem porquê.” Depois de Os Desastres de Sofia e As Férias, a trilogia da Condessa marca-o para sempre: uma infância inteira em poucas centenas de páginas. O realizador sublinha o carácter intemporal da autora russa: “Ela ainda hoje é fortíssima. Só a Condessa percebia que a infância é um território de culpa e de liberdade ao mesmo tempo.” É precisamente essa ambiguidade que o filme explora: as crianças falam como adultos, os adultos comportam-se como crianças assustadas, e a moral da história nunca chega a sossegar ninguém.

Um encontro improvável
O impulso cinematográfico nasce anos mais tarde, em Veneza, num encontro improvável na Praça de São Marcos. Paula Rego aproxima-se, reconhece João Botelho, oferece-lhe um copo de vinho e, pouco depois, uma promessa: “Eu faço os décors, o guarda-roupa, tudo.” Apaixonada pela Condessa de Ségur, a pintora vê no projecto uma extensão do seu próprio universo de meninas marotas e cruéis. O projecto, porém, é chumbado pelo ICA. Quando finalmente o filme avança, Paula Rego já morreu. “Este filme é para ela. Só para ela”, diz Botelho.
Regresso à infância
“As Meninas Exemplares” torna-se assim um duplo regresso: à infância e a Paula Rego. A luz de João Ribeiro compõe planos que parecem quadros animados; o piano de Daniel Bernardes costura a narrativa; a narração da Victória Guerra assume o tom de fábula moral em permanente sabotagem. João Botelho reivindica Manoel de Oliveira como fantasma tutelar — “cem dias de rodagem, planos eternos” — e filma muitas cenas com espelhos, como quem descobre “um filme mudo, forte, dentro do próprio filme”.

Filmar os livros de infância
João Botelho fala de cinema com entusiasmo quase infantil: cita Martin Scorsese, elogia “os americanos radicais” que ainda acreditam que o cinema é um “pecado necessário” e insiste na ideia de que ver um filme é, antes de tudo, um gesto físico: sair de casa, sentar-se numa sala escura, partilhar o espanto com desconhecidos. No fim, “As Meninas Exemplares” é menos uma adaptação piedosa da Condessa de Ségur e mais um auto-retrato enviesado de João Botelho: um homem que continua a filmar como quem lê livros de infância às escondidas, com um sorriso maroto e uma imensa gratidão pelas mulheres — reais e imaginárias — que o ensinaram a desobedecer.
JVM

