Uma interpretação incrível de Patricia López Arnaiz. ©Festival de San Sebastián.

Pequenos Clarões – Análise

“Pequenos Clarões”, da espanhola Pilar Palomero é quando um filme acende luzes onde só esperávamos sombras e nos devolve, sem vergonha, a emoção que julgávamos guardada para sempre. Esta pérola de cinema chega finalmente esta semana às salas nacionais.

Vi “Pequenos Clarões” (Los Destellos) na Competição do SSIFF72 – Festival de San Sebastián 2024 com aquela sensação rara de estarmos diante de um filme que não se exibe, não se desculpa e não precisa de nada para além da sua própria humanidade. Saí da sala com a convicção — que mantenho mais de um ano depois — de que Pilar Palomero tinha ali um dos grandes filmes do festival, daqueles que parecem pequenos até começarem a mexer onde dói, e depois já não os conseguimos esquecer.

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Pilar Palomero, o tesouro (ainda) escondido

Pequenos Clarões
A câmera desliza com leveza sobretudo pelo belo rosto de Isabel (Arnaiz). ©Festival de San Sebastián

O cinema espanhol, quando decide falar de família, raramente falha é o caso de “Pequenos Clarões”. Mas Palomero, que em Portugal continua a ser uma espécie de tesouro escondido, faz aqui algo mais íntimo, mais contido, quase mineral. “Raparigas” (Las Niñas, 2020) mostrou-nos uma realizadora de lembranças. “La Maternal” (2022) — que nunca por cá estreou — revelou uma observadora feroz do feminino. “Pequenos Clarões” confirma agora a cineasta que sabe filmar o que não se diz.

O regresso impossível a uma vida que já não existe

Adaptado de um conto de Eider Rodríguez, o “Pequenos Clarões” acompanha Isabel (Patricia López Arnaiz), que vive no campo com o novo companheiro, até que a filha, recém-chegada de estudar fora, lhe pede um impossível emocional: voltar a visitar o ex-marido Ramón (Antonio de la Torre), agora gravemente doente. Quinze anos de silêncio depois, ela entra naquele apartamento, que partilhou durante anos, como quem entra num velho sótão: há coisas que reconhece, outras que a assustam e, sobretudo, há uma vida que ela preferia não revisitar.

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Um reencontro sem reencontro

Palomero filma este reencontro sem reencontro, este luto antes do luto, com um pudor que hoje quase parece contracorrente. Não há manipulação emocional, não há música a dizer-nos o que sentir, não há flashbacks maternamente explicativos. Só há dois corpos a aprender a coexistir com a memória e com o fim.

Actores no auge da verdade

Patricia López Arnaiz, a protagonista de “Pequenos Clarões” — é a mãe de “20000 Espécies de Abelhas” — confirma-se como uma das grandes intérpretes espanholas da actualidade. O rosto queimado pelo sol, as mãos hesitantes, a respiração presa, tudo nela soa a verdade. E Antonio de la Torre (“O Reino”, 2018), finalmente a fugir da caricatura do “homem tenso”, constrói aqui um Ramón vulnerável, desconstruído, quase frágil ao ponto de desaparecer no próprio corpo.

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Silêncios que dizem tudo

“Pequenos Clarões” é todo feito de silêncio, mas nunca de vazio. Os gestos contam mais do que as palavras: Isabel encostada à porta do quarto; Ramón a dizer “não entres”, numa súplica que é mais vergonha do que recusa; a filha a tentar que o amor resolva aquilo que a vida estragou; e um cão que, sem querer, funciona como bússola moral deste trio desalinhado.

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Entre Platero, a memória e o fim

Pequenos Clarões
“Pequenos Clarões” fala igualmente da generosidade, solidariedade e humanidade. ©Festival de San Sebastián

Há em “Pequenos Clarões” ecos de “Platero e Eu”, citado aliás no filme, naquele modo de olhar a morte com ternura e uma espécie de magia bruta. Palomero filma o luto como um processo real: cheio de contradições, irritações, memórias boas, memórias más e uma surpresa final: ninguém sabe como se despede realmente de alguém.

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Um filme pequeno, mas decisivo

E talvez seja por isso que “Pequenos Clarões” nos agarra tanto: porque não oferece respostas, não procura catarse e não finge que perdoar é simples. Mostra apenas o que sobra da vida quando a vida já está quase a ir embora. É um filme pequeno na duração e grande na coragem. De uma beleza terrena, quase táctil, que se cola ao espectador dias depois. Uma pequena preciosidade que, nas salas portuguesas, merece ser descoberta sem pressa, com o coração aberto e, se possível, com a humildade de quem sabe que a vida também é isto: clarões. Pequenos, mas decisivos.

JVM

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Pequenos Clarões — Análise
  • José Vieira Mendes - 90

Conclusão:

Pequenos Clarões é daqueles filmes que parecem simples à superfície, mas que se entranham devagar, como quem coloca a mão num registo antigo e sente que ali ainda pulsa qualquer coisa. Pilar Palomero confirma-se como uma cineasta que filma o que quase ninguém se atreve: o espaço entre as palavras, o desconforto da memória, o amor que sobra depois do amor acabar. Não há moral da história, não há redenções fáceis, não há reencontros milagrosos — há apenas humanidade, aquela que nos apanha desprevenidos quando alguém está realmente a desaparecer. E é aí, nesses segundos frágeis, que o filme nos ilumina: mostra que a vida se faz de gestos pequenos, de clarões breves e de uma honestidade que só chega quando já não há tempo para fingimentos. Um filme modesto na forma, enorme no que deixa a vibrar depois.

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Overall
90
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Pros

O Melhor: a contenção precisa da realização de Palomero, as interpretações absolutamente verdadeiras de Patricia López Arnaiz e Antonio de la Torre, e na forma delicada como o filme aborda o luto sem recorrer ao sentimentalismo. É cinema que confia no espectador, que o trata como adulto e que prefere a subtileza à lágrima fácil.

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Cons

O Pior: sendo “pior” uma palavra quase injusta neste caso — é que a subtileza extrema e a recusa de explicações podem afastar quem espera um drama mais convencional, com reconciliações claras e narrativas fechadas. É um filme para quem aceita silêncio, ambiguidade e humanidade sem filtros.

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