Rita Durão é Sofia, uma das meninas exemplares. ©Fotografias: Jaime Freitas/Pinturas: Vera Midões

As Meninas Exemplares — Análise

Em “As Meninas Exemplares”, entre a culpa, a rebeldia e a infância reencontrada, João Botelho faz do cinema uma arte de resistência e ternura.

João Botelho voltou de braço dado com as com “As Meninas Exemplares”. E não voltou sozinho com elas: trouxe consigo a Condessa de Ségur, a Paula Rego e uma ‘turma’ inteira de meninas desobedientes. “As Meninas Exemplares” é um daqueles filmes que só podiam nascer do cruzamento improvável entre a infância e o pecado, entre o riso e o castigo. Botelho, o cineasta que há décadas nos habituou à solenidade barroca e à ironia culta, entrega aqui um filme luminoso, íntimo e surpreendentemente acessível e uma ode à imaginação, à feminilidade e à infância como último refúgio num país envelhecido e saturado de cinismo. O realizador decidiu levá-lo a todo o país, fora dos multiplexes e dos centros comerciais. Quer mostrar o filme em cineteatros, auditórios e escolas, acompanhado de uma exposição de gravuras de Paula Rego. É um gesto político, artístico e emocional: levar o cinema português às aldeias onde o streaming ainda não matou o espanto.

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Rita Durão
Sofia uma extraordinária Rita Durão. ©Fotografias: Jaime Freitas/Pintura: Vera Midões

A Sofia que há em cada um de nós

Baseado nos livros da Condessa de Ségur — essa russa que escrevia sobre meninas francesas e pecadoras —, “As Meninas Exemplares” é tudo menos um conto de fadas. É um espelho da humanidade, onde a Sofia (uma extraordinária Rita Durão) se confronta com a culpa, o medo e a desobediência. Enquanto Camila (Crista Alfaiate) e Madalena (Catarina Wallenstein) são as “meninas exemplares”, Sofia é o reverso da medalha: impulsiva, mentirosa, cruel e irresistivelmente viva. Botelho filma-a com ternura, sem paternalismo, como se dissesse: é das imperfeições que nasce o carácter. Entre castigos e lágrimas, a câmara transforma o moralismo vitoriano da Condessa num teatro sensual e crítico, iluminado pela herança de Paula Rego. Há algo de profundamente libertador nesta conjugação entre o clássico e o carnal, entre a infância e o olhar feminino. Sofia é todas as mulheres que ousaram não ser exemplares e todos os homens que ainda tentam compreender porquê.

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Paula Rego, presença invisível e viva

Paula Rego atravessa “As Meninas Exemplares” como um fantasma luminoso. Não está, mas sente-se. A composição dos planos, as cores, a textura dos corpos e até a crueldade das fábulas trazem consigo o espírito da pintora que via nas meninas “bem-comportadas” o desejo secreto de serem más. Botelho dedica-lhe o filme como quem escreve uma carta de amor tardia: “Ela adorava a Condessa de Ségur, chegou a oferecer-se para fazer o guarda-roupa e os cenários. Só não viveu o tempo de o ver nascer”, contou o realizador. E, de facto, o filme parece feito com a mesma matéria dos sonhos e dos traços de Paula Rego, entre o riso e o medo, entre o sagrado e o profano. Cada cena é um quadro que respira, cada gesto é uma linha de desenho à procura de redenção.

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Botelho, o cineasta das meninas (e dos fantasmas)

Há um lado profundamente botelhiano neste regresso à infância de “As Meninas Exemplares”. O autor de “O Filme do Desassossego” e “Os Maias” reencontra aqui a leveza e o humor que andavam a precisar de palco. A luz de João Ribeiro, cúmplice habitual, é um personagem por si só, quase sempre teatral, quase sempre barroca, mas com uma doçura nova. O piano de Daniel Bernardes acompanha a narrativa com elegância, acompanhado a voz e a forte presença de Victória Guerra, que narra, entre o sonho e o sarcasmo, dá ao filme uma estrutura de fábula moral Botelho tem o dom de fazer coexistir Manoel de Oliveira e Walt Disney no mesmo enquadramento, com uma gargalhada cúmplice. É um cinema literário, sim, mas cheio de carne, de ironia e de prazer visual. A certa altura, é impossível distinguir o real do imaginado e é precisamente aí que o filme encontra o seu coração.

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As Meninas Exemplares
Um filme coral com grandes actrizes. ©Fotografias: Jaime Freitas/Pintura: Vera Midões

O cinema como acto de resistência

Numa altura em que o cinema português luta para ser visto — e em que apenas 2% dos espectadores compram bilhete para filmes nacionais —,“As Meninas Exemplares” surge como uma proposta contra-corrente. Não é um produto para para o streaming, é uma obra para pessoas verem nas salas. É cinema que pede corpo presente, olhar atento e um mínimo de disponibilidade para ser tocado. João Botelho e o produtor Alexandre Oliveira decidiram fazer aquilo que o Estado não faz: levar o filme às capitais de distrito, às escolas, às aldeias onde ainda há plateias abertas à novidade, porque nem tudo lhe chega com facilidade. Um cinema itinerante, quase romântico, que parece dizer: “se o público não vem ao cinema, o cinema vai ao público”.

As meninas entre o riso e o castigo

Há algo de deliciosamente subversivo em ver um filme português sobre meninas exemplares que, afinal, não são nada exemplares. A Sofia de Rita Durão tem a mesma inquietação que atravessa a obra toda de Botelho: a culpa que gera prazer, a obediência que alimenta o pecado. E é aí que “As Meninas Exemplares” ganha a sua modernidade: ao filmar o passado, Botelho fala do presente. Do medo, da repressão e da necessidade de quebrar regras. Das mulheres que não cabem nos moldes e dos homens que continuam a filmá-las com admiração. “As Meninas Exemplares” é, no fundo, uma história sobre o poder do olhar, o da Condessa, o da Paula, o do João e o nosso. Um filme sobre o que é crescer sem deixar de imaginar. Um gesto de amor à infância e à arte de desobedecer.

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JVM

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As Meninas Exemplares — Análise
  • José Vieira Mendes - 80

Conclusão:

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“As Meninas Exemplares” é João Botelho no seu melhor: livre, irónico e profundamente sensível. Ao cruzar a Condessa de Ségur com o espírito de Paula Rego, o realizador devolve-nos a infância como espaço de rebeldia e imaginação. Um filme luminoso que lembra que o cinema português ainda pode surpreender, sobretudo quando vai ao encontro do público.

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O melhor: Rita Durão numa interpretação vibrante; a presença estética de Paula Rego em cada plano; a fotografia de João Ribeiro e a leveza irónica de Botelho; o gesto político de levar o filme a escolas e aldeias.

Cons

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O pior: O estilo teatral e literário pode afastar espectadores habituados ao realismo; a voz off e a estrutura clássica podem soar excessivas para alguns; difícil de ver fora das sessões presenciais e não é filme para streaming.


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