Brian Wilson (1942–2025) | O surfista da alma
Não surfava, mas levou milhões de pessoas até ao mar. Não era dado a multidões, mas pôs gerações inteiras a cantar em harmonia. Brian Wilson, dos Beach Boys, partiu aos 82 anos.
Brian Wilson, o arquitecto sonoro dos Beach Boys, faleceu aos 82 anos e com ele desaparece uma das vozes mais singulares, vulneráveis e brilhantes da história da música popular. A voz interior do verão eterno. O oráculo da melancolia californiana. Manifestação de interesse do autor: este texto foi escrito ao som dos Beach Boys!
Brian Wilson foi muito mais do que o líder dos Beach Boys. Foi um alquimista de harmonias, um tímido prodígio que escreveu canções com um ouvido só — literalmente, porque numa brincadeira de crianças, levou com um cano de chumbo e não ouvia bem do ouvido direito — e ainda assim compôs algumas das mais complexas e emocionantes música pop do século XX. Era o Mozart de Inglewood, o Spector solar, o beatle da Costa Oeste que, na verdade, só queria estar ‘In My Room’.
Assim, num mundo em que a música pop se contenta tantas vezes com o imediato, ele deu-lhe profundidade emocional, arranjos ousados e uma sensibilidade desconcertante. ‘God Only Knows’, ‘Don’t Talk (Put Your Head on My Shoulder)’ ou ‘Surf’s Up’ não são apenas músicas: são estados de alma. São lugares a que se volta.
O verão nem sempre foi doce
O percurso de Brian Wilson teve tudo de épico: sucesso precoce, génio reconhecido, queda dramática, renascimento tardio e, finalmente, uma espécie de redenção pública. A sua vida foi uma montanha-russa emocional — e química também — que deixou cicatrizes, mas também música eterna. Na década de 60, reinventou a pop americana com o álbum ‘Pet Sounds’, uma resposta introspectiva e sensível ao ‘Rubber Soul’ dos Beatles.
Em vez de continuar a cantar sobre surfistas e carros, Brian mergulhou no seu próprio abismo e convidou-nos a fazer o mesmo. E não foi fácil. A indústria achou-o estranho. A banda achou-o ‘esotérico’. O público demorou a compreendê-lo. Mas a história acabou por fazer-lhe justiça. E que dizer de ‘Smile Sessions’, o disco ‘maldito’ que passou décadas por montar, até Brian o recuperar e apresentá-lo, já nos anos 2000, com uma dignidade quase bíblica? Há quem diga que foi um dos maiores milagres musicais da era digital. E talvez tenha sido mesmo.
O carinho global por um homem frágil
Com a notícia do falecimento de Brian Wilson, os tributos chegaram de todo o mundo: de fãs comuns, de músicos consagrados, de escritores, fotógrafos, anónimos. Um denominador comum? Emoção pura. Há quem tenha cantado ‘God Only Knows’ à filha recém-nascida ou no chuveiro pela manhã, mas sempre num tom carregado de tristeza.
Quem se tenha apaixonado ao som de ‘Wouldn’t It Be Nice’. Quem tenha visto o mundo inteiro mudar de cor ao ouvir ‘California Girls’… mesmo que estivesse em Burnley, sob um céu cinzento. Brian tinha essa magia: fazia-nos acreditar num lugar melhor. Mesmo quando ele próprio já não acreditava. Durante anos, lutou com demónios pessoais, isolamento, abuso psicológico (incluindo por parte do seu pai e mais tarde de um terapeuta sinistro que quase lhe roubou a vida criativa). Mas resistiu. Reapareceu. E voltou a emocionar plateias em todo o mundo, mesmo com a voz já falhada, mesmo com o olhar ausente.
‘Love and Mercy’: a mensagem final
Na sua melhor canção tardia, ‘Love and Mercy’, Brian canta quase como quem pede desculpa. Mas na verdade oferece aquilo que nos deu sempre: amor e consolo. Mesmo com o coração partido, com medo do mundo e apenas com um ouvido. Melinda, a mulher que o ajudou a regressar à vida nos anos 90, morreu em 2024. Pouco depois, diagnosticaram-lhe a ele demência. Nos últimos meses, já era visível que a luz se estava a apagar devagar. Mas Brian Wilson não era feito de escuridão. Era feito de som. De harmonias que nos limpam a alma. De melodias que cabem no coração de qualquer pessoa que já tenha amado, perdido, crescido.
A ‘surfar’ uma última onda
O verão já não será o mesmo sem ele, caraças! Mas os discos vão, espero continuar a rodar. As canções vão continuar a curar as nossa feridas de amor e animar as nossa almas e festas. E quando um bebé parar de chorar ou um idoso saudoso e nostálgico como eu se emocionar ao ouvir ‘God Only Knows’, quando alguém em Liverpool, Lisboa ou Lausanne sorrir ao som de ‘Wouldn’t It Be Nice’, Brian Wilson estará lá, invisível, talvez, mas sempre presente. Como só os verdadeiros génios conseguem estar. Obrigado, Brian. Onde quer que estejas, esperemos que as ondas do mar sejam suaves, o piano esteja afinado… e que ninguém te obrigue a tocar essa música horrível chamada ‘Kokomo’, embora, confesso-te, eu goste. Hélas!
JVM