Cloud Atlas, em análise
É na melodiosa composição de “Cloud Atlas Sextet” que surge a metáfora da criação. Simples conjugação de graves e agudos ao piano que contrariam o princípio de Descartes. Um “Penso, logo existo” reversível, onde a existência (seja ela humana ou não) é o ponto-chave da criação, da revolta, dos sonhos, do pensamento.
“Cloud Atlas”, no fundo, assume-se como uma ligação cinematográfica a um cosmos metafísico. Uma obra que deverá inspirar a natureza intelectual do espectador. Fazendo-o refletir sobre temáticas tão diversas como a possível outra vida, o princípio de que a uma ação está sempre sujeita uma reação, a existência ou não de um Deus omnipotente, o poder do amor, das reminiscências e dos sonhos na existência humana… e fá-lo de uma forma peculiarmente genial.
Não será portanto fácil resumir a sua narrativa recheada de elementos enriquecedores que prometem ser criadores do caos na mente de quem o vê. E depois de se associar todas as peças do puzzle, a polarização será uma verdade evidente. Mas uma coisa é garantida: por muito que não acreditemos nas teorias humanas do filme, há grande probabilidade de, durante três curtas horas, acreditar nelas piamente.
Seis histórias diferentes, seis épocas diferentes, todas interligadas. Desde o século XIX, no Pacífico, onde um advogado se conecta com um escravo negro sendo mutuamente salvos. Seguindo para 1936 onde um jovem inglês descobre o amor com um homem em Cambridge, mas é na Bélgica que revela a sua intelectualidade musical, compondo “Cloud Atlas Sextet”.
Passamos por 1973 onde uma jornalista vê a sua vida por um fio quando tenta desvendar o mistério por detrás de uns suspeitos problemas nucleares. A história segue num tom cómico para os dias de hoje onde um idoso é aprisionado num lar. Em 2144, em Neo Seul, há fabricantes geneticamente construídos, e há amor e rebelião extra-humana para ser descoberta. E tudo termina 106 Invernos depois da ‘Queda’ num futuro apocalítico.
Da forma mais inesperada, todas estas histórias se interligam através de uma edição esplendorosa e sempre acertada de Alexander Berner. E esses pequenos fios condutores, levam-nos numa viagem inesquecível pelo conceito de livre-arbítrio. Afinal o que é ser livre se ainda não tivemos a oportunidade de experienciar a prisão e a opressão?
Andy e Lana Wachowski (juntamente com Tom Tykwer) voltam ao terreno psíquico de “The Matrix” e “V for Vendetta” abordando de uma forma bastante credível e profunda a capacidade de o Homem, uma simples gotícula, ser capaz de revelar-se muito mais do que uma gota, num oceano que é na verdade uma multidão de gotas. Fica a ideia de que não interessa fracassar, importa sim, agir.
Em auxílio permanente da qualidade argumentativa, está um exímio trabalho visual. Efeitos especiais de alto calibre, que até transformam Seul numa cidade irreconhecível. Paradoxalmente, a maquilhagem é um dos grandes pontos positivos, e um negativo também: por vezes magistral, metamorfoseando os personagens, por vezes demasiado artificial, quase plástica. No seu todo, pode dizer-se que temos aqui um dos melhores trabalhos dos últimos anos neste âmbito.
Um cast recheado de boas estrelas também ajuda. Mas quem mais se evidencia até são os mais novatos (à exceção dos fantásticos Jim Broadbent e Hugo Weaving) : Ben Whishaw e Jim Sturgess são um dos focos emocionais mais fortes (algumas cenas que protagonizam chegam à comoção) e Doona Bae é a alma impulsionadora e o veículo mais verosímil para “Cloud Atlas” se tornar um fenómeno de culto.
Não é um filme de evidências imediatas. É, antes disso, uma reflexão complexa sobre a vida e aquilo que nos guia. Um filme que irá dispersar opiniões, mas que lá no fundo, será um óptimo tema de debate num colóquio cinematográfico.
DR
Tive o prazer de assistir a este filme, e apesar de ter uma forte mensagem e ser sem dúvida alguma uma obra prima em termos de imagem e argumento, a duração acaba sempre por cansar o espectador. Muitas vezes perdemo-nos sobre quem é quem, e com quem está e qual o objectivo de cada um.
Pessoalmente achei que a performance do cast esteve bastante bem, mas confesso que é um filme com uma mensagem forte e que nos permite pensar sobre as matérias descritas na analise.
Parabens e continuem 🙂
Muito bom, muito reflexivo. Por sinal seria um bordão colocar os irmãos Washowski meramente pelos efeitos. A linha tênue entre ficção e realidade faz com que o expectador penetre no mundo reflexivo de Cloud Atlas. Não há uma resposta pura, ms o papel de Sr. Smith – Hugo Weaving – rs remonta a ideia de opressão e a percepção da caverna, mutias vezes representadas pela ilha, montanhas, salas escuras, prisões etc.. o conhecimento ferindo e questionando dogmas também faz o leitor mergulhar nesse universo reflexivo. O ponto chave na percepção da representação de Hugo Weaving é que ele esteve o tempo todo rodeado de outros dois personagens, o que me levou a refletir sobre a possibilidade da tríade freudiana (ID, EGO e SUPEREGO). Ao passo que suas metáforas sempre representaram no inconsciente coletivo formas de manipulação e controle do potencial transformador humano.
Valeu pelo espaço! Abraço e continuem!