Margarida Gramaxo levou 10 anos para filmar "Lindo". ©Maus da Fita

Lindo – Análise

“Lindo”, de Margarida Gramaxo, uma docu-ficção rodada na Ilha do Príncipe mergulha na transformação íntima de um homem e na reconciliação possível entre tradição e ecologia. Um filme lindo…lindo. Depois de ser premiado em vários festivais, estreia finalmente nas salas, na próxima quinta 10 de Julho.

Há filmes que nos ganham pelo olhar e outros pela alma. “Lindo”, de Margarida Gramaxo, consegue ambos. Primeiro pela beleza serena da Ilha do Príncipe — captada com uma precisão que é mais que estética, é afetiva — e depois pelo percurso íntimo do seu protagonista, Lindo (de seu nome Manuel da Graça), um homem que, tendo passado duas décadas a caçar tartarugas marinhas, se transforma num dos principais defensores da sua preservação.

Rodado ao longo de quase dez anos, “Lindo” é muito mais do que um documentário de sensibilização ecológica. É uma reflexão poética sobre mudança, pertença e reconciliação, onde o ser humano não está acima da natureza, mas dentro dela, condicionado por ela, moldado por ela e, no melhor dos casos, comprometido com a sua defesa.

Lindo
Lindo de seu nome Manuel da Graça, caçador de tartarugas. ©Maus da Fita

A epifania da tartaruga

“Lindo” incluí um momento de epifania — o encontro de Lindo com uma tartaruga dócil que, em vez de fugir, o acompanha no mar, e aqui faz lembrar “A Sabedoria do Polvo” (2020) — mas nunca cede à tentação do dramatismo fácil.

A realizadora opta por uma abordagem contemplativa, tecendo imagens e palavras com grande delicadeza. Há mergulhos que duram o tempo suficiente para sentirmos o pulso da ilha, há silêncios que dizem tanto quanto os diálogos, e há uma escuta ativa às vozes locais que raramente se vê no cinema português.

O Lindo é uma pessoa

Margarida Gramaxo constrói uma docu-ficção que evita a rigidez do documentário clássico e, ao mesmo tempo, não se entrega completamente à encenação. A fronteira entre registo e interpretação é habitada com inteligência e sensibilidade. Lindo não é apenas um símbolo, é uma pessoa.

Com passado, com fé (é também pastor evangélico), com dúvidas e com um lugar ativo na comunidade. O filme acompanha o seu reencontro com as praias onde caçava, os colegas que resistem à mudança, os debates sobre o futuro económico da ilha — agora Património da Biosfera da UNESCO — e o impacto do turismo e do investimento estrangeiro.

Lindo
As imagens subaquáticas são de uma enorme beleza. ©Maus da Fita

A beleza das imagens sub-aquáticas

A câmara de Hugo Azevedo (e a subaquática de João Rodrigues) regista esta paisagem com uma clareza visual impressionante. Mas mais do que a beleza, há aqui um respeito pela dignidade do lugar. Nada é exótico ou embelezado em excesso. A natureza aparece como ali está, com as suas cores, texturas e ritmos — e isso basta.

Outro ponto alto é a montagem de Grazie Pacheco, que consegue articular diferentes temporalidades (entre o passado de Lindo e o presente da ilha) sem perder o fio da narrativa. A banda sonora de Hugo Leitão e o desenho de som de Pedro Freitas criam um ambiente imersivo, sem nunca se sobreporem à verdade das imagens.

Lindo
O equilíbrio da relação homem-natureza marca o filme. ©Maus da Fita

Uma lição de vida

“Lindo” é, também, uma lição de escuta. A realizadora dá tempo ao protagonista, mas também às conversas de grupo, aos gestos diários, aos dilemas não resolvidos. E fá-lo sem julgar, com a consciência de que não há mudança sem contradição, nem sustentabilidade sem conflito.

Se há algo que o filme poderia desenvolver com mais clareza, seria talvez o enquadramento sociopolítico do investimento estrangeiro na ilha. Mas essa opção por não fechar o discurso é coerente com a proposta da obra: deixar que o espectador sinta, reflita e — como Lindo — talvez mude.

É raro ver um primeiro filme tão maduro, tão atento ao detalhe e ao invisível. “Lindo” não é apenas uma ode à natureza, mas também à capacidade humana de transformação — lenta, difícil, mas possível. Um gesto de cinema humilde e luminoso, que nos deixa a pensar muito depois dos créditos finais.

JVM

Lindo — Análise | Uma fábula sensível sobre redenção, natureza e pertença
  • José Vieira Mendes - 90

Conclusão:

“Lindo” é um gesto de cinema feito com tempo, escuta e respeito. Sem recorrer a dramatizações forçadas nem a discursos moralistas, Margarida Gramaxo constrói uma obra sensível que honra a transformação do seu protagonista e convida o espectador a repensar a sua relação com a natureza. Se a narrativa por vezes se dilui num registo contemplativo excessivo, a verdade é que o filme encontra força na sua delicadeza e coerência emocional. Uma estreia promissora, que prova que o cinema pode ser político mesmo quando sussurra baixinho.

Overall
90
Sending
User Review
0 (0 votes)

Pros

O melhor: A beleza serena e nada forçada das imagens captadas na Ilha do Príncipe. A construção íntima do protagonista Lindo como símbolo de transformação e pertença. O respeito ético e estético pela comunidade retratada. A banda sonora e o desenho sonoro que ampliam a experiência sensorial

  • A recusa do didatismo e o tom contemplativo que convida à reflexão

Cons

O pior: Algumas sequências estendem-se sem acrescentar camadas novas à narrativa. A ausência de maior contextualização sociopolítica limita o alcance de certos temas. O risco de a estética idealizada tornar a paisagem genérica ou pouco particularizada. Um ritmo lento, que pode afastar espectadores habituados a narrativas mais estruturadas



Também do teu Interesse:



About The Author


Leave a Reply