Faro, a série — Análise
Agora terminada “Faro” a série da RTP realizada por Joaquim Leitão é uma viagem pelo Algarve da especulação imobiliária, com crime e clichés à portuguesa que se misturam numa narrativa que bem podia ser mais bem amanhada. É pena porque a ideia é excelente.
Ora bem, a RTP1 decidiu levar-nos em pleno verão para sul, para o Algarve, em mais aposta na ficção nacional, com a série “Faro”. A premissa é daquelas que nos fazem levantar a sobrancelha com um misto de esperança e ceticismo: especulação imobiliária na Ria Formosa. Afinal, quem é que não sonha com mais um resort de luxo num dos nossos paraísos naturais, mesmo que isso signifique escorraçar meia dúzia de pescadores e abater umas casotas ilegais que são, vá lá, um pedaço da nossa história? O argumento é bom, o cenário é de babar, e a atualidade da gentrificação atinge-nos como um calhau na testa. Bem intencionado, portanto.
Uma realização ultra-competente
A máquina por trás das câmaras é comandada por Joaquim Leitão, um cineasta que já nos provou que sabe fazer filmes com público. Sim, isso existe no cinema português! “De Uma Vez Por Todas”, “Adão e Eva”, “Tentação”… São tudo títulos que nos lembram que apesar de muito anos depois, Leitão não veio para as séries de televisão para brincar. E em “Faro”, a realização é competente, sem grandes rasgos de génio, mas sem desaires catastróficos. É o que se esperaria, nem mais, nem menos.
As (boas) âncoras do elenco
No que toca às interpretações, em “Faro” temos um trio que merece uma ovação de pé. Adriano Luz e Miguel Borges brilham como os protagonistas, um advogado com um passado (e presente) misterioso e um pescador irredutível. E o que dizer de Rui Madeira? No papel de agente da Polícia Judiciária, o homem, que já não é propriamente um garoto, parece ter rejuvenescido uns bons 20 anos em frente às câmaras. Uma lufada de ar fresco nas nossas séries! Os pequenos, mas impactantes, papéis de Márcia Breia, Maria D’Aires e Luís Vicente também são de sublinhar, dando um toque de classe. Já a malta mais jovem, bem, vamos dar-lhes um desconto. São bonitos, mas nem sempre são muito convincentes, mas a juventude tem dessas coisas. E quantas mais séries e cinema fizerem, melhor para eles!
Uma montagem saltitante
Agora, agarrem-se, que a viagem fica tremida, embora o mar nunca esteja agitado, para o veleiro que desliza suavemente, com as boias fora de bordo: não havia um velejador ou um skipper na produção? A montagem de “Faro”, que, convenhamos, vive da realização, parece ter andado às cambalhotas no tempo. Aqueles saltos estranhos entre passado, presente, presente, passado… A história, por vezes, fica tão confusa que só nos apetece parar e perguntar: “Mas afinal, onde é que estamos?” Clareza no argumento não é, decididamente, a palavra-chave.
Um Algarve de cliché ou de combate?
E assim chegamos ao argumento, que é onde a porca torce o rabo. Tino Navarro – que é um produtor de mão cheia, diga-se de passagem, e talvez devesse ficar só por aí, pois é co-argumentista e faz ainda uma ‘perninha’ como actor – e o algarvio André Guerra dos Santos perdem-se em subtramas que parecem ter sido enfiadas a martelo. Imigrantes clandestinos desembarcam no Algarve, um sem-abrigo que é, surpresa das surpresas caído do céu, que afinal é um trágico fotógrafo de guerra…tudo muito oportuno e bem intencionado, mas a série devia centrar-se mais na complexidade e nas possíveis reviravoltas da investigação principal, nas camadas de hipocrisia local e claro nessas memórias do passado revolucionário dos protagonistas em 1975. Mas não, temos a história das “meninas-dominatrix“, com uma atuação pouco convincente da bonita atriz brasileira Tainá Muller, em modo femme fatale. Por que não uma casa de alterne mais clássica, bem frequentada pelos notáveis da terra, incluindo o advogado “dos pobres” com o seu passado revolucionário mal resolvido? Isso sim, seria um toque de génio à portuguesa! Para quê tanta sofisticação….
Fazer menos mas muito bom
O argumento “Faro”, também se debate para preencher oito episódios. Nota-se quase como sempre que o orçamento é curto para tanto, e a RTP, com pelo menos três séries portuguesas no ar ao mesmo tempo, parece estar a esticar a corda. Valia mais fazer menos, mas com mais qualidade, do que várias produções que, sejamos francos, ficam pela mediania, como é o caso. O ritmo da série também é uma montanha-russa: ora temos uma resolução rapidíssima, ora caímos naquele ritmo letárgico dos filmes portugueses que tanto aborrece o espectador. “Faro” é uma série esforçada, sim, mas não nos agarra completamente, deixando-nos a meio caminho entre a curiosidade e o bocejo e depois a resolução final óbvia e previsível com tudo a despachar. E é pena, porque é uma boa ideia (como aliás também de filmar fora da capital) como já tinha acontecido com a série “Braga”, realizada por Pedro Ribeiro e também produzida pela MGN Filmes, de Tino Navarro.
Ver a paisagem a passar à janela
E a ironia final: apesar da intenção louvável de abordar a gentrificação e a espoliação das populações em prol de empreendimentos de luxo, a série não tem o impacto que se esperaria sobre a nossa realidade. Fica-se pelo bem-intencionado, mas falta-lhe o soco no estômago. “Faro” tinha tudo para ser um espelho da nossa triste realidade, mas acaba por ser apenas mais uma paisagem a passar na janela, sem nos tirar o fôlego. Uma pena, porque a bela ilha de Faro merecia uma série que a fizesse tremer não só os alicerces das suas ‘casinhas’, mas os alicerces do poder e da corrupção dos promotores imobiliários aos orgãos públicos e de protecção ambiental. Os 8 episódios estão disponíveis desde ontem na RTPplay.
Faro, a série — Análise
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José Vieira Mendes - 70
Conclusão:
“Faro” é como aquela mariscada com bom aspecto, mas onde metade vem congelada e a outra mal cozida. Tem intenções nobres, tem bons ingredientes, mas falta-lhe uma mão firme na cozinha. Joaquim Leitão tenta salvar o prato com o seu savoir faire, mas não consegue esconder os ossos duros do guião. Vejam sobretudo pelo Adriano Luz, Miguel Borges, pelo Algarve fora de época, e pelo Rui Madeira em modo detetive sexy tardio. Mas não esperem a nova “Bron” ou a “Mare of Easttown” à portuguesa…talvez um dia lá chegaremos.
Overall
70User Review
( votes)Pros
O melhor: Adriano Luz, Miguel Borges e Rui Madeira em grande forma. Uma realização sólida de Joaquim Leitão, mesmo com pouco por onde pegar. A aposta da RTP em mostrar um Algarve menos postal e mais político.
Cons
O pior: A desastrada montagem. Subtramas metidas à pressão (dominatrix? fotógrafo de guerra sem-abrigo? imigrantes a monte?). Diálogos expositivos e personagens que explicam demais. A dificuldade em manter coerência narrativa ao longo dos oito episódios. A sensação de que podíamos ter tido uma série de 4 episódios bons em vez de 8 medianos.