Leão XIV Não Vai ao Cinema, mas o Cinema Vai ao Papa
Entre a batina e a claquete, o Vaticano e o Papa Leão XIV abriram as portas e deixaram entrar Hollywood e o mundo do cinema. A fé ganhou luzes, câmara e ação e a história confirma: os Papas sempre tiveram um fraquinho pela sétima arte.
O Dia em que Hollywood foi ao Vaticano
Ontem de manhã no Vaticano dizem que parecia uma cena de filme. Guardas suíços perfilados, mármore a brilhar, frescos renascentistas a olhar lá de cima e Cate Blanchett a atravessar o pátio como se estivesse num plano de Terrence Malick. Atrás dela vem Spike Lee, que passa pela Porta Santa com o ar de quem vai rodar “Não Dês Bronca —Versão Pontifícia”. De um lado, Monica Bellucci recorda que já foi Maria Madalena; do outro, George Miller imagina “Mad Max: Estrada em Fúria – Edição Vaticano”. Este sábado, 15 de novembro de 2025, o Palácio Apostólico recebeu realizadores, actores e toda uma fauna luminosa que qualquer festival tentaria agarrar, para a passadeira vermelha. Mas aqui não houve passadeira vermelha: houve um Papa. E não um Papa qualquer: Leão XIV, o mais cinéfilo desde que Roma inventou o primeiro projector de 35mm improvisado nos túneis das Catacumbas (estou a exagerar, mas percebe-se a ideia). “Se o Papa não vai ao cinema, então o cinema vai ao Papa.” E não pode haver nada mais literal neste acontecimento.

O Papa que Gosta de Capra, Julie Andrews e Sentimentalismos
O encontro começou com um gesto inusitado: o Papa Leão XIV dias antes anunciou os quatro filmes que mais marcaram a sua vida, obras dignas de uma verdadeira sessão da Cinemateca Portuguesa ou das Noites de Cinema da RTP-Memória:
— Do Céu Caiu Uma Estrela (It’s a Wonderful Life, 1946), de Frank Capra
— Música no Coração (The Sound of Music, 1965), de Robert Wise
— Gente Vulgar (Ordinary People, 1980), de Robert Redford
— A Vida é Bela (Life Is Beautiful, 1997), de Roberto Begnini
Expectativas? Alguns imaginavam Rossellini, Pasolini, Dreyer. Mas o Papa saiu-nos mais com Frank Capra do que Ingmar Bergman, mais Julie Andrews do que Ingrid Bergman, mais americano sentimental do que teólogo existencial. O Papa gosta de finais com esperança, lágrimas com redenção e famílias que sofrem mas sobrevivem. E quem somos nós para julgar? Cada santo com a sua cinefilia. Cada cinefilia com o seu santo.
VÊ “ENCONTRO COM O MUNDO DO CINEMA”
O que importa é o gesto do Papa Leão XIV: um Pontífice que partilha os filmes que o consolaram, que o fizeram pensar, que o ajudaram a olhar a vida “com novos olhos”. E esse gesto serve um propósito maior: mostrar que a Igreja quer falar com quem conta histórias.
A Igreja Sempre Teve um Fraquinho por Câmaras
O Papa Leão XIV não inaugurou nada. A relação entre Papas e cinema é mais antiga do que a televisão a preto e branco, das transmissões da Procissão das Velas em Fátima e do programa 70X7. Em 1955, Pio XII já tinha recebido milhares de profissionais do cinema na Basílica de São Pedro e perguntou-lhes, com uma candura quase hilariante: “Qual é o segredo que leva bilhões de pessoas a pagarem bilhete para se sentarem na escuridão?” A resposta era simples: o cinema mostrava aquilo que a Igreja sempre fez: narrar histórias…Mas com outro ritmo, outra sedução e outra rebeldia.

Em 1959, João XXIII criou a Filmoteca Vaticana, como quem diz: “Se Deus vê tudo, o Vaticano também deve ver.” Cinema como documento, história, testemunho. Mas também com riscos: os famosos “danos morais” que afligiam o Papa Bom, preocupado com os grandes decotes e argumentos pecaminosos. Com Paulo VI, a relação ficou ainda mais intensa. Ele disse aos cineastas: “Vocês são intermediários de sentimentos e ideias. Tenham coragem: deem asas ao espírito.” A Igreja, sempre preocupada com a moral, começou a perceber que o cinema não era inimigo, pelo contrário era uma boa ferramenta, ponte e provocação.

Depois veio João Paulo II, o Papa polaco, actor, poeta, dramaturgo. Para ele, o cinema podia promover um “humanismo enraizado no Evangelho”, mas não precisava ser catequese. Podia ser aventura, fábula, tragédia, comédia, desde que falasse do humano com grandeza. Bento XVI, mais reservado, encontrou no cinema uma forma de reviver páginas da história. Viu o filme “João Paulo II” e confessou que chorou, mas não por causa do argumento. E Francisco? O Papa Francisco percebeu desde cedo que a beleza é tão sagrada quanto a verdade. Falou do cinema como “expressão de Deus”, como ferramenta para “despertar a maravilha”, como arma contra a violência da indiferença. Leão XIV, portanto, não apareceu do nada. É herdeiro de uma longa linhagem de Papas que foram vendo, aos poucos, que a sétima arte é evangelho laico, sacramento pagão e que vale a pena dialogar com ela.

O Cinema como Invocação, Não Evasão
No encontro deste sábado, Leão XIV foi talvez mais longe do que se poderia esperar. Disse que “a beleza não é apenas evasão, mas invocação”. Que o cinema “coloca a esperança em movimento”. Que nas salas escuras, onde os algoritmos não mandam, a imaginação pode salvar. Que o filme certo, na hora certa, cura. É impossível não sorrir: um Papa a dizer que o cinema educa o olhar é quase um realizador a dizer que a liturgia é boa fotografia. E o discurso continuou, com o Papa a pedir aos cineastas para defenderem a lentidão, a diferença, o silêncio. Contra o ruído, a repetição, o imediato. É o novo humanismo da Igreja: menos catecismo, mais contemplação.

Antes de Hollywood, Sua Santidade Encontrou…De Niro
E no meio deste alinhamento cósmico, há outra cena irresistível: Robert De Niro, aos 82 anos, e dias antes recebeu do autarca de Roma, a Ordem do Lobo Capitolino aproveitou e, no dia seguinte, foi ao Vaticano, cumprimentar o Papa e receber um terço. Ele, que foi Vito Corleone, Travis Bickle, Rupert Pupkin, Jake LaMotta. Se Deus perdoa tudo, também pode perdoar a carreira de De Niro a partir dos anos 2000. O Papa recebeu-o com um sorriso, um “Good morning”, — afinal são os dois americanos e descendentes de imigrantes — uma fotografia. Dois ícones frente a frente, um da fé, outro do cinema. E nenhum pareceu particularmente intimidado.

A Igreja Precisa do Cinema e o Cinema Precisa da Igreja?
Não é ingenuidade. É estratégia. A Igreja sabe que já não domina a narrativa como antes dominava. Sabe que a ficção — como “Conclave” — chega onde o sermão não chega. Sabe que Cate Blanchett e Spike Lee têm hoje mais influência cultural do que muitos teólogos. E, ao mesmo tempo, o cinema sabe que o mundo anda a perder salas, espectadores, atenção, sentido. Por isso este encontro faz sentido: não é para converter ninguém. É para conversar. Para respirar. Para perguntar: como contamos a fragilidade? Como contamos a esperança? Como contamos a dor? Como disse Roberto Andò — o director do jornal do Vaticano — a propósito do presente no encontro: “O cinema sempre representou os que caem no vórtice da sociedade.” E isso é, no fundo, obra de misericórdia.
Quando o Papa se senta entre cineastas, o cinema volta a ser casa
O Papa Leão XIV não vai ao cinema seria difícil passar despercebido. Mas o cinema foi ao Papa e certamente encontrou ali também uma casa, um eco, um olhar atento. No fim, tudo se resume a isto: tanto a Igreja como o cinema vivem de histórias e as histórias fazem girar o mundo. Ambos procuram sentido. Ambos tentam iluminar o humano. Ambos têm vocação para o mistério. Porém, se um dia nos disserem que a fé salvou o cinema ou que o cinema salvou a fé, talvez não estejam assim tão enganados. Porque, no escuro da sala ou na penumbra de uma capela ou de uma igreja, o que pedimos é sempre o mesmo: uma imagem que nos guie, uma história que nos segure e um pequeno milagre de luz para continuarmos aqui e em paz.
JVM

