MOTELX 2025 | A Useful Ghost – Análise
É na secção retrospectiva Serviço de Quarto, que encontrámos, em 2025, um dos nossos títulos favoritos da programação do MOTELX. “A Useful Ghost” é um conto fantástico mirabolante repleto de paixão, vingança e inventiva capacidade narrativa. Esta co-produção entre Tailândia, Singapura, Alemanha e França, realizada por Ratchapoom Boonbunchachoke, passou pelo festival com apoio da Embaixada da Tailândia e com direito a um belo “banquete” a anteceder a projeção do filme.
Da Semana da Crítica para o 19.º MOTELX
Um dos filmes mais aclamados da 19.ª edição do MOTELX é, nada mais nada menos do que “A Useful Ghost”, da autoria de Ratchapoom Boonbunchachoke. Esta obra onírica, divertida, queer, deliciosa e repleta de momentos inesperados chegou-nos a partir da Semana da Crítica (de Cannes), onde se consagrou vencedora.
E que merecido foi este prémio. É verdade que “A Useful Ghost” é facilmente alvo de críticas devido à sua narrativa com muitas intenções distintas: ora é comédia do absurdo, ora é fantasia existencial com fortes conotações políticas. Não obstante, o grande mundo vasto desta longa-metragem torna-a ainda mais preciosa. É fácil extrair significado, uma e outra vez, sem que a narrativa se esgote em si própria, muito antes pelo contrário.
Neste mundo de realismo mágico ou fantasia, se preferirmos, uma jovem rapariga possuí um aspirador, com consequências tangíveis para o seu viúvo, toda a sua família e ainda para o véu ténue que separa o mundo dos vivos do dos mortos. Nat, a jovem que adoeceu e deixou o seu esposo March sozinho, foi vítima de uma doença respiratória que, no universo do filme, se torna cada vez mais comum, fruto da poluição industrial na Tailândia.
Mas eis que Nat se recusa a abandonar o seu jovem esposo enlutado, regressando na forma de um aspirador – consequentemente, o objeto produzido na fábrica que pertence à família de March e que inclusive foi fechada recentemente depois de chumbar uma inspeção devido à possessão dos equipamentos por um antigo funcionário revoltado após a sua morte.
Portanto, estamos assim situados num mundo repleto de eletrodomésticos possuídos, o que naturalmente leva a muitos momentos repletos de humor, em particular enquanto nos habituamos à premissa habitual. O tom de “A Useful Ghost” vai oscilando de forma constante, e uma vez que nos habituamos a ver o aspirador possuído pelo espírito de Nat, vamos começando a sentir uma evolução para uma perspectiva mais séria, mais política e mais profunda.
A Useful Ghost: da comédia à revolta societária
“A Useful Ghost” é, em grande parte, um filme acerca de expectativas societárias. Nomeado em Cannes para a Palma Queer, é um filme imbuído de grandes sensibilidades neste campo, demonstrando-nos como a Tailândia continua, nesta perspectiva, a ser um país algo fechado e tradicionalista. A opção de Nat e March, a de continuarem juntos após a morte da esposa, é algo equiparável e equiparada ao longo da duração do filme. Um gesto de desafio pouco ortodoxo, que viola a lei natural e relação expectável entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Nat captura o nosso coração, mesmo que as suas ações possam ser algo duvidáveis. Desesperada e determinada em não desaparecer, a jovem fantasma procura formas de ser “útil” e acaba por se transformar, inadvertidamente, na arma secreta de um juiz duvidoso que quer fazer desaparecer todos aqueles que lhe fizeram frente. Instrumentalizada, Nat torna-se uma dupla assombração, perseguindo outros fantasmas no mundo dos sonhos e fazendo com que os seres vivos que os recordam os esqueçam pouco a pouco.
Mais para o seu final, “A Useful Ghost”, primeira longa de Ratchapoom Boonbunchachoke, torna-se um estudo bastante poético acerca da natureza da memória e dos atos de resistência que nos dão acesso a uma das memórias mais poderosas: a memória coletiva.
Com simbolismo sem fim, muito humor e muita intencionalidade, “A Useful Ghost”, escrito também pelo seu realizador, é um filme que nos deixa com um grande vazio existencial, mas também com esperança de que o futuro possa ser melhor, mais justo e mais ciente dos erros do passado. Uma metáfora inteligente para dissidência política e também um grande romance, eis que a obra de Boonbunchachoke nunca impõe limites à criatividade do seu argumento, deixando-nos com imagens tão improváveis quanto deliciosas e memoráveis.
Esperemos que a obra chegue às salas comerciais e que continue a surpreender por esse mundo fora, pois por mais culturalmente específica que possa ser, o seu apelo e humanidade são verdadeiramente universais.
Conclusão
Com simbolismo sem fim, muito humor e intencionalidade, “A Useful Ghost” é um filme que nos deixa com um grande vazio existencial, mas também com esperança de que o futuro possa ser melhor, mais justo e mais ciente dos erros do passado. Uma metáfora inteligente para dissidência política e também um grande romance, eis que a obra de Boonbunchachoke nunca impõe limites à criatividade do seu argumento, deixando-nos com imagens tão improváveis quanto deliciosas e memoráveis.