Netflix, Warner e o Velório das Salas de Cinema | O Dia em que Hollywood Encolheu
A compra da Warner pela Netflix promete reescrever as regras da indústria. Entre festivais a tremer, espectadores afundados no sofá e salas em risco de extinção, a pergunta é simples: estamos a assistir ao futuro do cinema ou ao seu funeral?
Há muito que sabemos que Hollywood está sobre uma falha sísmica. Porém, a notícia caiu como um meteorito nas redacções nos media, nos grupos de WhatsApp cinéfilos e nas redes sociais, já com as salas de cinema meio vazias, durante a maior parte dos dias da semana, de Portugal: a Netflix decidiu comprar a Warner Bros., a HBO, a HBO Max e tudo o que vier no pacote, incluindo um século de história que agora muda de mãos como quem troca cromos raros. Fala-se ainda em aprovação ou não dos reguladores, em anos de transição, em burocracias, que dará o negócio por concluído em meados de 2026. Mas a verdade é que o estrondo já aconteceu. Hollywood encolheu. E nós encolhemos com ela, enfiados no sofá, a pensar se ainda faz sentido sair de casa para ver um filme que daqui a 17 dias no “padrão Netflix”, já estará no streaming. Este negócio não é apenas mais um capítulo das “guerras do streaming”; é o capítulo em que a espada entra mesmo na carne. Porque se a Disney engoliu a Fox e a Amazon devorou a MGM, agora é a vez da Netflix devorar a Warner, o estúdio que inventou grande parte do mundo que Hollywood hoje tenta desesperadamente salvar. E se alguém acredita que isto não vai mexer com a exibição em sala, sugiro que desligue o Netflix por cinco minutos e respire ar puro.

O Império do Sofá e o Fim da Janela Sagrada
Convém lembrar que a Netflix nunca quis ser Hollywood; quis foi substituí-la. Começou a entregar DVDs pelo correio, como quem distribui pão quente e, em 2013, com “House of Cards”, destruiu o hábito televisivo de décadas. Não por amor à arte, mas por amor ao algoritmo. E agora o algoritmo tem nas mãos “Casablanca”, “Harry Potter”, “Dune”, “Game of Thrones”, “Batman” e “Superman”. Quando se diz que conteúdo é petróleo, este catálogo é uma refinaria privada e de luxo. O discurso oficial de Ted Sarandos, o CEO da Netflix, tenta acalmar os nervos: “continuaremos a lançar filmes em sala”. Pois claro, Ted. Mas por quanto tempo? Uma semana? Dez dias? O suficiente para cumprir os requisitos dos Óscares e regressar o mais depressa possível ao santo graal da Netflix: o sofá do espectador. O cinema, tal como o conhecemos, sobreviveu graças à (grande) janela de exibição: os grandes ecrãs e as salas de cinema. Agora essa janela está a ser serrada com um sorriso corporativo.

A Extinção Lenta do Cinema de Rua
Do ponto de vista empresarial, a fusão é um sonho: menos custos, menos redundâncias, mais lucro e também menos despesas para os consumidores. Do ponto de vista cultural, é o início do velório. Quando o maior serviço de streaming do mundo passa a controlar um dos maiores estúdios de cinema, o resultado é inevitável: menos risco artístico, mais filmes médios, menos diversidade, menos salas. O cinema de rua, esse vestígio romântico onde ainda acreditamos que o grande ecrã é insubstituível, pode transformar-se num nicho tão elitista quanto a ópera. Se é que ainda existem muitos? As associações de exibidores já gritam que é “uma ameaça sem precedentes”. E têm razão. Se as salas tinham dificuldade em competir com as televisões 4K, imaginem agora competir com uma gigante que decide exactamente quando, onde e como um filme existe.

Os Festivais Entre a Asma e a Agonia
Os Festivais de Cannes, Veneza e Berlim podem fingir que continuam a mandar nas sua selecções oficiais, mas sabem bem que o poder mudou de endereço. Se a Netflix controla a Warner, controla as grandes estreias e as respectivas Selecções Oficiais. Se controla as estreias, controla a agenda dos festivais. E, sejamos sinceros, a Netflix nunca teve grande afecto por janelas de exibição, muito menos pela rigidez francesa do Festival de Cannes e dos players que o apoiam. Imagine-se “Dune 3” a estrear em Cannes com 10 dias de janela. Ou “Batman” a passar em competição sabendo que aterra em streaming uma semana depois. O cinema de autor, já frágil, arrisca-se também a tornar-se irrelevante perante um algoritmo que mede emoção com gráficos e estatísticas de gostos e visualizações.

O Espectador Preguiçoso, Somos Todos Nós
A grande verdade é incómoda: o culpado não é só o streaming. Somos nós. Somos nós que preferimos ver um épico de 200 milhões de dólares enfiados na manta, em casa com o telemóvel na mão à espera de notificações. Somos nós que deixámos de ir ao cinema porque o bilhete custa o mesmo que um almoço e as pipocas fazem tremer a economia doméstica. Somos nós que aceitámos substituir a experiência colectiva por uma caixa luminosa apoiada no móvel da sala. A Netflix percebeu isso antes de todos. E ganhou o jogo.

O Cinema Não Morre, Mas as Salas, Sim.
Podemos obviamente manter esperança. Podemos acreditar que o cinema continuará vivo enquanto houver criadores, histórias e público. Mas as salas? As salas estão a descer a encosta com a mesma velocidade que os DVDs desapareceram. Se ninguém travar esta fusão, ou mesmo que travem, já está tudo a mexer-se. O cinema transforma-se. As salas é que não vão sobreviver todas à viagem. E, quando derem por ela, a humanidade estará onde sempre esteve nos últimos dez anos: no sofá, a carregar no“Próximo episódio”, “Escolhemos Para Ti” ou “Os Melhores do Fim de Semana”.
JVM

