“O Fabuloso Destino de Amélie”, de Jean-Pierre Jeunet, com Audrey Tautou. ©Miramax

O Fabuloso Destino de Amélie não cabe no Instagram | 26.ª Festa do Cinema Francês

Vinte e quatro anos depois, “O Fabuloso Destino de Amélie” regressa às salas de cinema a partir de 2 de outubro, em cópia restaurada 4K e estreia na 26ª Festa do Cinema Francês. Um hino às pequenas coisas da vida, precisamente aquilo que o nosso mundo de ‘scroll’ constante transforma em ruído.

A Amélie Poulain regressa a Montmartre — podemos vê-la no grande ecrã a partir de 2 de outubro —, e passa por Lisboa no “O Fabuloso Destino de Amélie” (Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain, 2001) de Jean-Pierre Jeunet, com Audrey Tautou, numa sessão especial da 26.ª Festa do Cinema Francês; agora com uma cópia restaurada em 4K a limpar o pó do postal e a devolver-lhe as cores do velho bairro de Paris que já não é o mesmo. Aviso à navegação: no ecossistema cínico de 2025, a Amélie Poulain durava cinco minutos antes de ser cancelada num instante por ‘excesso de ingenuidade’. Justamente por isso é que nós precisamos dela e saudamos o seu regresso.

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Há restauros que apenas afinam pixels; este reensina-nos talvez a olhar. O 4K devolve a Montmartre o vermelho certo das framboesas, o verde impensável dos candeeiros e aquele amarelo que, em 2001, parecia sair do interior de uma lembrança. O filme não fica ‘moderno’; mas ficou mais nítido no essencial: a sua textura do mundo. E sobretudo é importante perceber que isso numa sala cheia, faz toda a diferença: a partilha do riso baixo, o suspiro sincronizado, o silêncio antes do quebrar do caramelo do creme brûlée.

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
A Amélie Poulain (Audrey Tautou) regressa aos  velhos cafés e brasseries de Montmartre. ©Miramax

Um filme para viver, não só para ver

Jean-Pierre Jeunet assinou aqui a sua obra maior, talvez seu ‘uma vez na vida’, apesar de ter dado continuidade ao seu digno trabalho como realizador. Audrey Tautou, em parte também, porque não interpreta: habita. Yann Tiersen não acompanha: mas respira connosco, com a sua música. E a personagem inventa um programa mínimo de salvação pública — melhorar discretamente a vida dos outros — que hoje certamente seria confundido com marketing de influência para ‘marca pessoal’ ou pura ingenuidade sem consequências.

Audrey Tautou
Audrey Tautou não interpreta a personagem, habita-a. ©Miramax

O choque com 2025 (ou como matar a poesia com métricas)

Imaginemos a Amélie Poulain na economia da atenção dos nossos dias: o cego que ela ajuda a atravessar a rua faria logo um reel ‘emocionante’ com trilha épica e com o #Gratidão; a caixa de brinquedos perdida na infância surgiria no OLX à venda por 200€ (“vintage, entrega em mão”); a vingança poética ao merceeiro daria origem a um vídeo choroso no TikTok; o romance com Nino (Matthieu Kassovitz) morreria imediatamente no ‘visto às 23:48’ (obrigado, WhatsApp). E alguém no LinkedIn explicaria que ‘meter a mão no saco do grão’ revela falta de foco no objetivo principal ou falta de profissionalismo.

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O Fabuloso Destino de Amélie
“O Fabuloso Destino de Amélie” não cabe no feed das redes sociais. ©Miramax

Amélie como antídoto (e manifesto)

É justamente por “O Fabuloso Destino de Amélie” não caber no feed das redes sociais que este seu regresso é muito importante. O filme defende a lentidão, a cortesia, o gesto anónimo que muda um dia  e, às vezes, uma vida. O vizinho com ossos de vidro lembra: ‘não tens ossos de vidro; podes aguentar os baques da vida’. Em 2025, a resistência é isto: esquecer as redes sociais, entrar numa sala escura, pôr o telemóvel em modo avião e reaprender a ver e a viver a vida com prazer, ajudando também os outros.

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O Fabuloso Destino de Amélie
Entre grãos e framboesas há uma outra textura do mundo em “O Fabuloso Destino de Amélie”. ©Miramax

Montmartre, postal e prova de vida

O ‘postal ilustrado’ de Montmartre não é uma fuga: é crítica. A fantasia de Jeunet revela, por contraste, como nos tornámos especialistas em converter tudo em conteúdos, em vez da de viver a vida. Por isso, a Amélie Poulain não evangeliza: sugere. Não evangeliza porque não precisa de likes. Sugere porque a felicidade, quando existe, raramente é fogo-de-artifício ou  apenas um detalhe que alguém teve tempo de reparar.

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O Fabuloso Destino de Amélie
Imaginemos a Amélie na economia da atenção dos nossos dias? ©Miramax

Se Amélie Poulain vivesse em 2025…

  • Atravessar o cego seria interrompida para ‘selfie inclusiva’ e logo participante de uma campanha #OlharSemVer.
  • Caixa da infância reaparece como ‘colecionável vintage’ (ou NFT), com licitação em live.
  • Mão no saco do grão ‘por favor, não comprometer o stock higienizado’ do artigo; usar luva de plástico, pedir recibo e elaborar um survey.
  • Cartas anónimas investigadas como phishing; ‘conteúdo suspeito’ removido por IA, abuso ou aliciamento ilícito.
  • Nino algoritmo do Tinder sugere um ‘perfil mais compatível’; a conversa morre no ‘visto às 23:48’.
  • Vinganças poéticas processo por difamação e danos à ‘imagem pessoal’ da vítima.
  • Vizinhança excêntrica prédio convertido em ‘coliving premium’ ou airbnb com um café em baixo que serve dirty chai latte e avocato toast ao balcão.

Porque vale a pena voltar a ver a Amélie?

Ver ou rever “O Fabuloso Destino de Amélie” restaurado é um ato de higiene sensorial. A versão 4K não só aguça a cor como devolve proporções: as coisas pequenas voltam a ter tamanho humano isto é grande. Não é nostalgia, é calibragem. Num presente viciado em velocidade, Amélie Poulain não nos pede para recuar, pede-nos para escolher. Escolher perder dez notificações para ganhar um gesto puro de sensibilidade. Escolher um plano prolongado em vez de dez cortes por segundo. Escolher o mundo dos detalhes contra o ruído das métricas, das opiniões, das estatísticas e da informação 24 horas.

O Fabuloso Destino de Amélie
A Amélie Poulain não evangeliza ninguém, ela sugere. ©Miramax

Um pequeno serviço público

Levem amigos que nunca o viram “O Fabuloso Destino de Amélie” em grande ecrã. Levem quem acha que ‘já o viu em streaming’ ou em DVD. Levem quem precisa de um lembrete gentil de que ainda há lugar para ternura sem ironia. Depois, sim, façam um brinde ao filme, não porque ‘parece novo’ e mais colorido, mas porque apenas nos devolve um antigo talento: ver com atenção e pensar com o espírito. Já lá estamos!


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