O Filho dos Mil Homens — Análise
“O Filho dos Mil Homens”, a adaptação brasileira mais aguardada do ano chega esta semana à Netflix. Quando o livro de Valter Hugo Mãe atravessa o Atlântico, a ternura ganha sotaque e o realizador Daniel Rezende devolve-lhe em filme o coração.
“O Filho dos Mil Homens”, de Daniel Rezende, é um romance português filmado com luz de Búzios, com alma atlântica, melancolia portuguesa e estreia esta semana na Netflix. Rezende adapta o livro de Valter Hugo Mãe com uma delicadeza rara, um risco calculado e uma fé quase infantil na ideia — revolucionária — de que a empatia ainda tem lugar no mundo. E sim, tem.
Quando um livro pede um filme, o Atlântico pede uma ponte

Há livros que praticamente exigem uma adaptação cinematográfica, e “O Filho dos Mil Homens” já nascia aparentemente com essa vocação na maré. É uma fábula de afectos improváveis, uma oração laica sobre a solidão e o desejo de amar alguém, mesmo que esse alguém seja inventado pelo coração. Daniel Rezende, o montador de “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, tornou-se realizador de pleno direito e pegou neste romance de 2011, atravessou-o para o Brasil, mergulhou-o na luz tropical e filmou-o como quem escuta uma história antiga com olhos novos.
Foi o seu primeiro trabalho como argumentista. E Valter Hugo Mãe, sem pestanejar, afirmou que o filme podia até ser “melhor do que o livro”. Rodrigo Santoro, sempre elegante, admitiu que este papel o tinha desarmado. Foram promessas fortes, que deixavam a fasquia lá em cima, no telhado — e embora não valesse a pena subir tanto a expectativas, vale muito a pena entrar.
Uma parábola portuguesa sobre a solidão que pede colo
No romance original, “O Filho dos Mil Homens” escrito sem maiúsculas como quem desmonta a língua para a devolver ao essencial, acompanhamos Crisóstomo, um pescador de 40 anos que vive sozinho e decide, num gesto de teimosia afectiva, que quer ser pai. O encontro com Camilo, um órfão que traz mais silêncio do que roupa, acende a primeira centelha de uma nova família.
Depois chegam Isaura, Francisca e Antonino, gente partida com feridas antigas, todos a caminho daquela casa junto ao mar onde os desamparados se reconhecem uns aos outros. No livro, o mar é metáfora e prisão; o tempo move-se devagar; os sentimentos sussurram. É literatura de escuta, não de ruído.

A melancolia portuguesa ganha o calor brasileiro
No filme “O Filho dos Mil Homens”, Rezende assume um risco evidente: adapta o romance para o Brasil. O Atlântico frio dá lugar à luz baiana, as casas de madeira trocam a maresia portuguesa pela textura das praias de Búzios, e a solidão ganha vento quente e um novo corpo. Mas Rezende não tenta filmar o livro; tenta filmar o efeito do livro. E isso, em cinema, é meia vitória. A fotografia de Azul Serra é deslumbrante: há planos que parecem pintados com sal — o vento a rasgar a praia, a luz a deslizar pelo rosto de Santoro, o mar como coro invisível que tudo comenta.
Rodrigo Santoro interpreta Crisóstomo com uma contenção luminosa, um homem que perdeu quase tudo, mas que ainda acredita na possibilidade da ternura. Miguel Martines, como Camilo, é um miúdo ferido que olha o mundo com medo e necessidade ao mesmo tempo. Juliana Caldas, Johnny Massaro e Rebeca Jamir oferecem vulnerabilidade suficiente para impedir que o filme resvale para o melodrama. É bonito — e hoje quase raro — ver um elenco inteiro a trabalhar com tamanha delicadeza.

Ternura sem pieguice e o amor como resistência
No centro da história de “O Filho dos Mil Homens” está uma ideia tão simples quanto antiga: família é quem fica. O sangue é biologia; o amor é escolha. Crisóstomo quer ser pai porque quer amar. Camilo quer uma mãe porque nunca teve nada parecido. Isaura foge porque nunca encontrou casa. Francisca aceita migalhas porque acredita que merece pouco. Antonino tenta ser aceite por quem nunca o soube ver.
Tudo isto podia descambar em folhetim — e com outros realizadores, descambaria alegremente para telenovela. Mas Rezende filma afecto com pudor: toques discretos, olhares demorados, abraços que dizem mais do que qualquer manifesto político. Há política aqui, claro: num mundo que insiste em reduzir, vigiar e legislar a ideia de “família tradicional”, “O Filho dos Mil Homens” lembra-nos que o amor, quando existe, não precisa de autorização nem de formatação.

Portugal + Brasil = uma língua chamada afecto
A ponte luso-brasileira também funciona em “O Filho dos Mil Homens” porque não tenta ocultar a sua travessia. O filme não finge ser português; o livro não deixa de o ser. O que surge é outra coisa: uma história de Valter Hugo Mãe lida por Daniel Rezende, iluminada por Búzios e respirada por Santoro. É uma tradução afectiva, um diálogo improvável, um encontro feliz. O romance atravessa o Atlântico e devolve-se ao mundo com sotaque brasileiro — e tudo aqui faz sentido, até porque provavelmente levará a obra de Valter Hugo Mãe a casas onde nunca entrou um livro seu, graças ao streaming. Há também um gesto simbólico raro: a língua portuguesa — essa casa de ida e volta — prova que continua a ser o mais duradouro dos afectos.

Um filho com mil mãos
No fim, “O Filho dos Mil Homens” é exactamente o que devia ser e o que se esperava que fosse: não uma obra-prima, não um candidato aos Óscares, mas um filme bonito, sensível, com alma. Não substitui o livro nem tenta. Faz outra coisa: transforma-o. É um filho colectivo. De um escritor português. De um realizador brasileiro. De um elenco que acredita na força da delicadeza. De uma Netflix que, para variar, apostou numa história feita de silêncio e afecto. E talvez seja mesmo um daqueles raros casos em que o cinema olha para o livro, sorri, e diz: “deixa-te estar tranquilo, eu trato disto.”
JVM
O Filho dos Mil Homens — Análise
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José Vieira Mendes - 75
Conclusão:
“O Filho dos Mil Homens” de Daniel Rezende não tenta competir com o livro e ainda bem. Faz outra coisa: reinventa-o com luz brasileira, afecto desarmado e a serenidade de quem sabe que uma boa história resiste a fronteiras. Rezende filma o que Valter Hugo Mãe escreveu: gente quebrada à procura de colo. O resultado é um filme sensível, honesto, atravessado por uma ternura que raramente chega ao grande público. Não é perfeito, mas é verdadeiro e isso, hoje, vale ouro.
Overall
75User Review
( votes)Pros
O melhor: A interpretação contida e luminosa de Rodrigo Santoro; a fotografia de Azul Serra, que transforma Búzios numa metáfora afectiva; a delicadeza com que Rezende filma o amor, sem pieguices nem estardalhaço; a coragem de adaptar um romance português sem o imitar — apenas respirando-o.
Cons
O pior: O segundo acto arrasta-se um pouco, como maré parada; a voz off tenta compensar o que no livro era interioridade pura; a ‘abrasileiração’ dilui parte da sombra e da culpa tão portuguesas no original.

