Jafar Panahi, cineasta tantas vezes perseguido e silenciado. ©Majid Saeedi

“Un Simple Accident”, de Jafar Panahi: Um pesadelo kafkiano na estrada da tirania | Diário do Festival de Cannes (Dia 10)

Na sua mais recente obra, Un Simple Accident”, apresentada na Competição de Festival de Cannes 2025, o cineasta iraniano Jafar Panahi regressa com um filme que é ao mesmo tempo farsa grotesca, comédia negra e denúncia pungente de um sistema corroído pela violência e corrupção.

Un Simple Accident” é tudo menos um filme simples — é uma parábola inquietante sobre um país onde o absurdo é quotidiano, e a injustiça, banal. Jafar Panahi, cineasta tantas vezes perseguido e silenciado pelo regime do Irão, continua a desafiar a censura com obras que encontram formas engenhosas de existir, chegarem aos grandes festivais e por sua vez ao público ocidental. Este novo filme poderá ser o seu mais emocionalmente direto, revelando o desespero de uma sociedade em colapso moral através de uma narrativa tão surreal quanto dolorosamente realista.

Un Simple Accident
Uma reunião improvável de um conjunto de personagens. ©Jafar Panahi Productions/Les Films Pelleas

Um acidente banal torna-se complexo

O filme começa com um acidente banal: um homem (Ebrahim Azizi) conduz de noite o seu carro, acompanhado pela sua mulher grávida e a filha pequena quando atropela um cão na estrada escura. Este episódio, do início de Un Simple Accident”, quase um cliché de um thriller ocidental dá o mote para uma espiral de eventos cada vez mais insólitos e absurdos, que não percebemos muito bem ao princípio, mas que têm com o objectivo de vingança ou ajuste de contas. O carro avaria e o condutor acaba por parar numa garagem onde é recebido por Vahid (Vahid Mobasseri), uma figura enigmática com dores nos rins e memórias traumáticas, mal resolvidas. Rapidamente percebemos que os dois se conhecem — e que esse reencontro acidental vai desencadear uma série de revelações sombrias.


Um pesadelo trágicómico

A história de Un Simple Accident”, desenrola-se quase como se fosse um pesadelo tragicómico, reunindo um conjunto de personagens que, cada uma à sua maneira, carrega feridas provocadas pela repressão do Estado islâmico, que esse condutor do veículo representa. Entre eles estão um livreiro, uma fotógrafa de casamentos, um casal de noivos e um professor irascível. A ação vai aos pouco atravessando cenários e situações cada vez mais absurdas — de hospitais onde se pedem “presentes” com caixas de doces a guardas-seguranças, que aceitam subornos por pagamento contactless — sem nunca perder de vista a crítica feroz ao sistema. A corrupção está normalizada, envolta em protocolos de aparente civilidade, e o cidadão comum, encurralado, tenta sobreviver no meio do grotesco.

VÊ TRAILER DE “UN SIMPLE ACCIDENT”

Uma representação do absurdo

A mise-en-scène de Panahi remete por vezes para o teatro do absurdo, com ecos da peça “À Espera de Godot de Samuel Beckett e até do filme “O Terceiro Tiro”, de Alfred Hitchcock. Mas ao contrário das farsas ocidentais, aqui não há espaço para catarse. A dor é real, a raiva é legítima, e a sátira é apenas o verniz sobre uma ferida aberta.


Entre o drama e o humor negro

É de destacar ainda a forma como Un Simple Accident” alterna entre registos — do drama ao humor negro, do realismo à alegoria — sem nunca perder o equilíbrio. O caos narrativo espelha a confusão emocional das personagens e o colapso ético de um país. Em determinado momento: uma mulher de vestido de noiva, prestes a casar é apanhada no meio do delírio coletivo, como se fosse personagem de um sonho febril ou de uma peça do dramaturgo britânico Joe Orton (1933-1967), transposta para o Irão contemporâneo.

A resistência de Panahi

Un Simple Accident” confirma assim Jafar Panahi como um dos autores mais resilientes e visionários do cinema mundial. Num contexto de repressão e vigilância, fazer cinema é um ato de coragem. Fazer um filme como este — provocador, elegante e comovente — é um verdadeiro acto de resistência. Há aqui uma Palma de Ouro 2025, à vista!

JVM

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