Yesterday | © NOS Audiovisuais

Yesterday, em análise

Danny Boyle e Richard Curtis assinam, em “Yesterday“, uma das comédias mais peculiares do ano, que é em iguais partes romance, sátira musical e homenagem ao génio dos Beatles.

Richard Curtis é um mestre da comédia romântica. Nem todos os seus filmes se podem chamar bom cinema, é certo. Na verdade, a maioria está bem longe desse patamar. No entanto, Curtis consegue sempre esboçar romances apelativos nos seus guiões, o tipo de história de amor que funciona porque faz com que o espectador se apaixone pelas pessoas no ecrã e anseie pela sua felicidade, porque o espectador entende intuitivamente que essa felicidade depende do florescer de romance. Além disso, Curtis tem uma habilidade invulgar em conceber grupos de amigos com dinâmicas enraizadas, relações orgânicas e diálogos que trespassam anos passados na companhia uns dos outros.

Essa é a força criativa por detrás de sucessos como “Quatro Casamentos e Um Funeral”, “Notting Hill”, a versão cinematográfica de “O Diário de Bridget Jones”, “O Amor Acontece”, “Dá Tempo ao Tempo”, “Mamma Mia! Here We Go Again” e, é claro, “Yesterday”. Convém, contudo, voltar a reforçar que, apesar de os filmes escritos por Curtis serem sempre charmosas joias de entretenimento, raramente são exemplos de bom cinema. Há quase sempre uma displicência formal a infetar as produções, os ritmos das histórias são erráticos e o argumentista tende a ser demasiado ambicioso para o seu próprio bem, pondo o pé de fora da sua zona de conforto, quase sempre com efeitos desastrosos.

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“Yesterday” é o perfeito exemplo dessa mesma dinâmica na carreira do cineasta. No seu âmago, esta é uma adorável comédia romântica sobre dois amigos de longa data que, graças a uma reviravolta na vida de um deles, são forçados a confrontar os sentimentos românticos que, de algum modo, sempre tiveram um pelo outro. O problema é que essa maravilha de doçura romântica está presa algures dentro de uma premissa fantasiosa que faz exigências ao argumentista que este é simplesmente incapaz de corresponder. Pedir a Richard Curtis para fazer uma sátira da indústria musical, um louco universo paralelo levemente diferente do nosso ou um comentário sobre a cultura popular atual é a receita para a catástrofe.

No início, quando o filme ainda é só uma amistosa comédia romântica com ambições minúsculas, tudo corre bem. Jack Malik é um músico com pouco sucesso que passa a vida a dar concertos em restaurantes locais de Lowestoft e cujos únicos fãs parecem ser os seus amigos mais próximos, incluindo Ellie, sua manager e antiga colega. Uma noite, depois de ter decidido abandonar os seus sonhos artísticos, Jack é atropelado por um autocarro no mesmo momento em que, por todo o mundo, a eletricidade falha. Quando acorda, tudo aparentemente voltou ao normal, tirando uns quantos dentes que Jack perdeu no impacto. Assim é até que o músico sem esperança se apercebe que mais ninguém se lembra dos Beatles, aliás qualquer indício da sua existência varreu-se.

Não foram só os Beatles, a Coca Cola também se foi, assim como os Oasis, mas é a banda de John, Paul, George e Ringo que interessa, pois Jack rapidamente decide aproveitar esta oportunidade miraculosa. Ele começa a tocar as músicas do lendário grupo, fazendo-as passar por composições originais e, num abrir e fechar de olhos, a sua vida muda. Um concerto num café leva à gravação de um demo, isso faz com que Jack apareça num talk show local que chama atenção de Ed Sheeran que o convida a abrir uma série de concertos na sua digressão. Depois de uma atuação explosiva em Moscovo e muitas reações extáticas nas redes sociais, a Beatlemania repete-se, desta vez centrada em Jack Malik.

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No meio de tudo isto, Ellie confessa ao amigo que está apaixonada por ele há anos. Parece que é tarde demais, contudo, visto que Jack tem de ir para Los Angeles a pedido de um Mefistófeles sob a forma de uma nova manager americana, assim como as demandas comerciais do seu novo estatuto de celebridade. A consciência cada vez mais pesada do plagiador certamente não ajuda a situação. São tudo elementos interessantes, mas nada disto se mescla de forma orgânica e, por muito que Richard Curtis tente, é impossível ignorar as incoerências tonais de “Yesterday”. Além do mais, os conceitos do filme são tão mal concretizados, tão pouco convincentes, que é impossível para o espetador não se distrair.

Afinal, como é que um mundo sem os Beatles é exatamente igual ao nosso? Pelo menos a indústria musical seria completamente diferente e o desenvolvimento dos estilos musicais contemporâneos teria sido de algum modo alterada. Como é que, num mundo igual ao nosso, com os atuais gostos vigentes e cultura popular, as músicas dos Beatles podem ser apresentadas sem grandes alterações e parecerem revolucionárias? “Yesterday” presume que o espectador aceita, como verdade absoluta, que os Beatles foram os melhores músicos de todos os tempos, as mais importantes estrelas pop que já viveram e que a popularidade das suas canções é uma constante cósmica. Isso não é algo inconcebível, mas seria apreciado se os cineastas envolvidos defendessem essa mesma ideia, ao invés de nos darem as novas versões destes clássicos em cenas filmadas de modo indiferente e com horrorosa sonoplastia.

Danny Boyle, pelo que lhe compete, realiza o filme com total impessoalidade. Só uns quantos usos inusitados de ângulos inclinados marcam a presença do cineasta atrás das câmaras. Só mesmo o elenco é que se propõe a salvar o projeto, bombardeando a audiência com um Blitz de charme e carisma na esperança de que ninguém repare no universo de problemas à sua volta. Nos papéis principais, Himesh Patel e Lily James tudo fazem para “vender” o romance e conseguem, em parte graças a uma enorme química entre os dois que tanto os faz parecer como um par de amigos inseparáveis como o melhor casal romântico imaginável para um filme destes. Quando eles não estão juntos, “Yesterday” perde o gás e vai-se abaixo, como um infeliz balão, murcho e sem graça nas mãos de uma criança a fazer birra.

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Com tudo isso dito, com todos estes problemas apontados, somos, ainda assim, incapazes de negar o apelo de “Yesterday”. Richard Curtis deve ser portador de alguns poderes mágicos, talvez tenha vendido a alma ao Diabo em troca da capacidade de fazer filmes invariavelmente charmosos. É a única explicação lógica face a um projeto que é um fracasso em quase todas as medidas imagináveis, desde a falta de consistência tonal até os mais ínfimos detalhes de design. A verdade é que, para quem não for ver “Yesterday” em busca de bom cinema, para quem for na expetativa de desligar o cérebro por umas horas e ouvir piadas fáceis, para quem adorar romances de Hollywood com um toque de charme britânicos, então esta sobremesa com muitas calorias e zero valor nutricional é o perfeito acompanhamento para uma tarde de verão. É boa arte? Não. É uma boa distração? Absolutamente.

Yesterday, em análise
Yesterday

Movie title: Yesterday

Date published: 14 de July de 2019

Director(s): Danny Boyle

Actor(s): Himesh Patel, Lily James, Kate McKinnon, Ed Sheeran, Joe Fry, Alexander Arnold, Myra Syal, Sanjeev Bhaskar, Harry Michell, Sophia Di Martino, Ellise Chappell, Karma Sood, Jaimie Kollmer, Justin Edwards, Sarah Lancashire, James Corden, Robert Carlyle

Genre: Comédia, Romance, Música, 2019, 116m

  • Cláudio Alves - 55
55

CONCLUSÃO:

Graças a um par de protagonistas adoráveis e um guião carente em ideias, mas rico em mecanismos românticos charmosos, “Yesterday” é um incompreensível sucesso. Richard Curtis, Himesh Patel e Lily James deviam ser investigados por associação com forças sobrenaturais, possivelmente relacionados com demónios de outros mundos, pois magia parece ser a única explicação viável para o modo como este desastre concetual consegue superar todos os obstáculos que levanta para si mesmo e conquistar o coração do espetador. Tudo isso e Ed Sheeran mostra ser melhor ator cómico que Kate McKinnon. O mundo está mesmo a ficar de pernas para o ar.

O MELHOR: A química entre Himesh Patel e Lily James.

O PIOR: Kate McKinnon no pior papel da sua carreira.

CA

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