LEFFEST’ 16 | American Honey, em análise

American Honey é um triunfo da realizadora britânica Andrea Arnold que, nesta quarta longa-metragem, vira o seu olhar para o interior dos EUA e sua juventude perdida.

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As imagens iniciais de American Honey poderão induzir em erro um espetador despercebido a pensar que estamos perante uma lancinante crítica social ao estilo de Ken Loach. Nesta abertura, vemos Star, a nossa jovem protagonista de 18 anos, a vasculhar um contentor de lixo com duas crianças que não são seus filhos mas dependem dela. Quando desencantam, por entre os sacos de comida putrefacta, um frango congelado, é um pequeno triunfo e rapidamente se viram para o próximo desafio da sua rotina, encontrar alguém que, no meio do cálido interior dos EUA, seja generoso o suficiente para lhes dar boleia para casa. Apesar de tudo isto, Andrea Arnold, na sua quarta longa-metragem e primeiro filme rodado nos EUA, parece estar a criar algo bastante distante de um retrato de indignação social. A sua obra é muito mais próximo de uma versão filmada de uma canção de Bill Calaham ou Bruce Springsteen, uma vibrante melodia contemporânea sobre juventudes marginalizadas e empobrecidas nos EUA que, longe de ressoar gritos militantes, oferece uma visão empática e poética dessas mesmas existências e o pitoresco cenário em que vivem.

Poderemos acusar, evidentemente, Arnold de estar a romantizar e até explorar de modo indecente a miséria alheia, mas a forma como a cineasta se recusa a julgar as suas personagens contrapõe tais argumentações. Aliás, toda a construção de American Honey é ancorada na perspetiva subjetiva da sua jovem protagonista e o filme é, por consequência, uma viagem sensorial que vemos através dos seus olhos e não uma análise crítica das suas escolhas, comportamentos e condicionantes sociais. Ao longo de American Honey, acompanhamos Star, e, tal como ela, começamos por testemunhar os detalhes da pobreza do seu ambiente, da sua terrível vida doméstica, antes de um raio de esperança lhe abrir os horizontes e a fazer sentir, pela primeira vez, viva e cheia de possibilidades.

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Essa energia, que brota da imagética regional do filme como uma flor que força passagem por entre um pavimento de alcatrão rachado, tem o seu início imediatamente a seguir ao tableau do contentor de lixo. Quando Star está à beira da estrada a tentar arranjar boleia, ela observa a passagem de um veículo bem diferente dos outros banais trausentes. Uma carrinha cheia de jovens aos gritos e a transpirar de hormonas tempestuosas cativa-a, a música ensurdecedora rebenta pela quietude naturalista da banda-sonora e, de uma das janelas traseiras, um rabo peludo exibe-se para todo o público. Como que hipnotizada, pelo coletivo e pelo olhar de um rapaz que a fitou do seu lugar na coxia, Star segue estes estranhos até um Wall-Mart próximo, onde volta a trocar olhares com o carismático jovem, chamado Jake, que dança para ela ao som de “We Found Love” Rihanna – uma escolha musical tão perfeita e óbvia que é quase transgressiva.

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Star e Jake rapidamente trocam umas quantas palavras no parque de estacionamento e, no dia seguinte, Star está de partida com o grupo na sua aventura pelas estradas desertas do interior dos EUA. Eles vendem subscrições para revistas mas, na verdade, são eles mesmos e suas histórias chorosas que são trocadas por dinheiro e, longe de serem altruístas Robin dos Bosques contemporâneos, o seu foco é completamente egoísta e hedonista. Depois de vermos o tipo de vida cheia de abusos e negligência de que Star desfrutava, é fácil de perceber as suas razões para se fazer à estrada, especialmente quando contabilizamos a isto a sua química com o intrépido Jake, que acaba por descarrilar num romance com ares de Bonnie e Clyde. Aqui o charme grosseiro de Shia Labeouf no papel do vendedor de revistas é uma mais-valia imensa e o carisma sombreado de volatilidade masculina típico do seu trabalho é usado com uma mestria até agora ausente da sua filmografia. Percebemos o fascínio de Star, mesmo que, à distância o possamos julgar de um modo que o filme nunca ousa fazer.

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Outra figura de relevo nesta trupe de jovens nómadas é a chefe de operações, Crystal. Ela é encarnada por Riley Keough num registo de mortífera agressividade sublimada e apresentada com todo a tacanha beleza de uma “white trash princess”, de tal modo que a sua presença é elétrica e perigosa, recordando sempre que, não obstante a impetuosidade e alegria de Star, este mundo em que ela se imiscuiu está longe de ser perfeito. De facto, Andrea Arnold inspirou-se num artigo jornalístico que encontrou numa revista em que se recontava precisamente o tipo de vida difícil e hedonística vivida por estes jovens e suas vendas de revistas através dos EUA. Sem nunca cair em salazes impulsos de acusação analítica, Arnold mesmo assim vai insinuando o lado mais negro deste estilo de vida, onde, todas as semanas se organiza um ilícito “fight club” onde se debatem os jovens com menos vendas e onde líderes tirânicas como Crystal subjugam os seus trabalhadores com punho de ferro.

Como que emulando a sua personagem mais antagónica, Arnold também acabou por ser uma líder despótica nas filmagens de American Honey, comandando a sua equipa formada por uma mistura de profissionais e amadores ao longo das estradas onde decorre a história, nunca partilhando os seus planos e exigindo um naturalismo improvisado que confere ao filme uma preciosa, mas exigente, noção de imprevisibilidade. A ajudar à sua particular visão autoral, a cineasta britânica teve a indispensável ajuda do seu habitual diretor de fotografia Robbie Ryan que aqui captura a hipnótica beleza das estradas americanas em tons de doirado solarengo e pinta os céus noturnos em azul-cobalto. Acompanhadas pela banda-sonora eclética e cortadas pela montagem sensual de Joe Bini, estas imagens relembram fotos de Instagram ao mesmo tempo que parecem vibrar da tela com uma energia cinética espetacular.

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É fácil deixarmo-nos embriagar pela experiência sensorial que a música, o som, a imagem e os ritmos da montagem despertam no espantador, e, de certo modo, Andrea Arnold faz isso mesmo. American Honey, com quase três horas, é um espetáculo de indulgência autoral que, ao usar e abusar de uma narrativa sem enredo ou estrutura discernível, cria um poema esticado até aos limites da suportável duração e que, por milagre, consegue ser cansativo mas nunca aborrecido. Na verdade, quando momentos mortos se registam, é porque essa mesma languidez e pausas são parte da vida na estrada e, por consequência, da experiência de Star que, como já foi mencionado, é o prisma pelo qual todo o filme nos é apresentado.

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Ao longo de American Honey vamos observando o atribulado crescimento emocional de Star que, interpretada pela luminosa estreante Sasha Lane, é uma verdadeira estrela que puxa todos os elementos do filme para a sua órbita pessoal. É impossível tirar os olhos dela e, tal com Arnold, nunca a julgamos, mesmo quando as suas ações são imaturas e insensatas. Esta imersão no feitiço desta jovem é tão grande que, no final, o filme dá-se por encerrado, não quando ocorre uma conclusão para qualquer tipo de história mas sim quando, pela primeira vez, Star abre os olhos e consegue imaginar, diante de si, um futuro. Para marcar este celestial choque, o filme usa um final mecanismo de idiossincrática expressividade – o silêncio que corta a música e, nessa quietude, nesse suster de respiração final, abandonamos Star cuja história está longe de ter terminado, mesmo que se vá desenrolar longe dos nossos curiosos olhares. Afinal, a vida é assim mesmo e, em mais uma obra-prima de ousadia cinematográfica, Andrea Arnold é capaz de cristalizar essa experiência na forma de um filme imperfeito, indulgente, intoxicante e espetacularmente transcendente.

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O MELHOR: A fotografia, sua pitoresca beleza e o modo como o uso do formato 4:3 permite que, por muito hipnotizantes que sejam as visões das estradas americanas e suas áridas paisagens, o foco de American Honey é sempre reduzida à escala humana de Star e suas experiências pessoais.

O PIOR: A poderosíssima banda-sonora poderá ser um desafio insuperável para os sistemas de som de muitos cinemas, resultando em momentos de ensurdecedor esfaqueamento dos ouvidos da audiência.



Título Original:
 American Honey
Realizador: Andrea Arnold
Elenco:
 Sasha Lane, Shia LaBeouf, Riley Keough, Arielle Holmes

NOS | Drama, Romance | 2016 | 163 min

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