99 Casas, em análise

 

99 Casas é um filme eticamente polémico e socialmente perturbador, que retrata o drama das famílias americanas que viram as suas casas confiscadas pelos bancos na sequência da crise financeira do “subprime” imobiliário de 2008. Andrew Garfield e Michael Shannon são o fósforo e a gasolina nesta América proibida, aonde os sonhos e a bancarrota cobram juros de vida altíssimos.

 

FICHA TÉCNICA

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Título Original: 99 Homes
Realizador: Ramin Bahrani
Elenco: Andrew Garfield, Michael Shannon
Género: Drama
NOS | 2016 | 112 min[starreviewmulti id=18 tpl=20 style=’oxygen_gif’ average_stars=’oxygen_gif’] 

 

Andava o povo tão bem encarreirado na vida até 2008: brutas casas, brutos carros, cartões de crédito com plafons à descrição, hipotecas sobre hipotecas só para custear os altos padrões de vida da classe média, até que a “bolha imobiliária” estoirou com os sonhos megalómanos de muita gente que vivia acima das suas possibilidades. Os bancos emprestavam de olhos fechados, e os mutuários intoxicavam-se com o consumismo que advinha da valorização crescente dos seus imóveis no mercado. Quando as taxas de juro escalaram com a especulação imobiliária, os devedores mais frágeis deixaram de pagar as suas prestações mensais, obrigando as entidades bancárias a confiscar e decretar ordens de despejo. É neste contexto de emergência social que o realizador Ramin Bahrani lança “99 Casas”, dando voz ao “mexilhão” constantemente abafado pelos lobos endinheirados de Wall Street.

“Bahrani recorre a um estilo de filmagem mais “street” e documental, realçando o íntimo familiar e a humildade daquelas paredes devassas sem fatigar o plano de imagem com uma extrapolação melodramática”.

Andrew Garfield é Dennis Nash, um empreiteiro para qualquer empreitada com um filho a cargo e uma habitação mediana a meias com a sua mãe. Durão, de camisola cava, e uma barba de três dias, assiste impotente ao arresto dos seus bens, enquanto o faustoso agente imobiliário Rick Carver (Michael Shannon) rouba-lhe o teto sem dó nem piedade como se o lar fosse apenas uma caixa de papelão descartável de maior ou menor dimensão. Mas foi esta realidade podre que Bahrani destapou no coração do Estado da Flórida: uma multidão de despejados que perderam tudo e foram descarregados em móteis ao longo da auto-estrada 142 para não acabarem debaixo da ponte. E o mais sinistro é que a contabilidade aponta para cerca de meio milhão de evictos que foram deixados a penar ao luar à margem da lei, desprotegidos e sem meios legais para combater o maior escândalo de hipotecas fraudulentas de que há memória.

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E foi naquele cubículo vulgar, três por quarto, na berma do asfalto, que Nash e a sua família amontoaram-se à revolta dos lesados, recusando aceitar aquele futuro literalmente hipotecado. Aqui, Bahrani recorre a um estilo de filmagem mais “street” e documental, realçando o íntimo familiar e a humildade daquelas paredes devassas sem fatigar o plano de imagem com uma extrapolação melodramática. Mas se o enfoque da trama é pautado pela desgraça alheia, mais controvérsia é gerada quando o flagelo existencial de Nash encaminha-o para os braços do homem responsável pela sua situação precária, estabelecendo-se esta relação pervertida entre condenador e condenado. O dilema moral é o combustível que assiste perpétuamente o enlace de Rick e Nash, que se autorizam a negociar uma espécie de acordo faustiano do tipo “tu fazes o meu trabalho sujo e eu cuido de ti”.

“Andrew Garfield exibe aquela gravilha emocional tão pujante e revoltosa de “A Rede Social”, esvaziando quartos e salas com a azia de quem sofreu na pele tal infortúnio a troco de dinheiro fácil.”

E tal como qualquer propriedade que o magnata Rick Carver possui no seu portefólio, Dennis Nash passa a estar na sua posse como um letreiro que se vendeu a si mesmo, coagido pela sobrevivência a intentar nos outros o que fora um atentado feito a si próprio. É neste papel de lacaio do diabo que Andrew Garfield exibe aquela gravilha emocional tão pujante e revoltosa de “A Rede Social”, esvaziando quartos e salas com a azia de quem sofreu na pele tal infortúnio a troco de dinheiro fácil. Mas ao contrário da postura aristocrata e sociopata que Michael Shannon investe na sua personagem, como se arrastar pessoas para o meio da rua fosse enviar cães para abate no canil, a persona de Nash demonstra compaixão por toda aquela gente em aflição, não se deixando arrogar de um qualquer estatuto de superioridade. Bahrani expõe a nu os vícios do enriquecimento ilícito com audácia e sensibilidade, mas fá-lo com uma crueza silenciosa como se as mansões desabitadas ficassem reduzidas a pura cosmética sem os seus donos originários, impingindo deliberadamente uma rodada de “shots ” panorâmicas, que promovem um contraste abruto entre o luxo obsoleto de Carver e as espeluncas dos Nashes que andam por aí, talvez mais humanamente valiosas que qualquer milhão por metro quadrado.

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Garfield não se acomoda à preguiça felina que o apelido possa sugerir, embora se deixe ir à bolina da liderança mais austera de Shannon com o intuito de fazer catapultar o seu papel de desfavorecido. E enquanto o primeiro adota um estilo de representação mais “impulsivo”, o segundo revela um “modus operandi” mais metódico que racionaliza a sua forma de agir em cena. Mas é este confronto hierárquico da arte representativa que promove a incubação de uma certa eletricidade emocional entre os dois atores americanos, até as duas forças colidirem desvairadamente. “99 Casas” é um filme que nos envolve nesta demanda populista pela verdade que grita pela justiça de um justiceiro atraído pelo crime por necessidade, mas que em última análise atinge-nos arduamente como uma lição de vida; um alerta urgente e obrigatório para os perigos falaciosos da máquina capitalista e dos operadores que alimentam a sua engrenagem criminosa; tão aliciante à superfície como destrutiva na sua essência.

P.S – Quem tudo quer, tudo perde…


MS

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One thought on “99 Casas, em análise

  • 99 Casas: 5*

    Um filme excelente que mostra de uma maneira crua, mas real o mundo do setor imobiliário e do sistema de despejos nos EUA recomendo.

    Cumprimentos, Frederico Daniel.

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