Curtas Vila do Conde 2015 | As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto, em análise

 

As Mil e Uma Noites

 FICHA TÉCNICA

  • Título Original: As Mil e Uma Noites – Volume 1, O Inquieto
  • Realizador: Miguel Gomes
  • Elenco: Crista Alfaiate, Adriano Luz, Américo Silva, Rogério Samora, Carloto Cotta, Fernanda Loureiro
  • Género: Drama
  • O Som e a Fúria | 2015 | 125 min

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Quando Miguel Gomes finalmente começou a compreender o que ira ser “As Mil e Uma Noites”, ligou ao produtor Luís Urbano para lhe dar a boa nova. “Urbano, queres as boas ou as más notícias?” “As boas“, respondeu. “Vão ser três filmes“. “E as más?“. “Vão ser três filmes“, concluiu Miguel Gomes. 

E como disse Gomes na apresentação do seu épico social na 23ª edição do Curtas Vila do Conde, pode haver dias em que o produtor rejubila com a ideia de que fazer três filmes é uma forma de cobrar mais três bilhetes ou, pelo contrário, pode haver dias em que ele simplesmente se debate com a necessidade de gerir um orçamento três vezes superior. Luís Urbano, aliás, antes de se aventurar na louca carreira de fazer filmes, era um dos membros da equipa do Festival de Vila do Conde. E talvez por aí se explique esta espécie de transmissão telepática de loucura que é abrir um  festival dedicado à celebração do Cinema em formato de curta-metragem com um filme de seis horas de duração.

Mais tarde percebemos que a vinda de Gomes a Vila do Conde estava fundamentada em duas razões principais: foi no Curtas que Miguel Gomes estreou a sua primeira curta-metragem, “Entretanto” – apresentada na edição de 1999 do Festival, vencendo, na altura, os prémios de Melhor Realizador e Melhor Fotografia – e, fundamentalmente, a possibilidade de encararmos “As Mil e Uma Noites” como uma obra que, na harmonia do seu conjunto, é passível de ser fragmentarizada em diversas curtas-metragens de estreita relação com sociedade que tenta retratar.

Apesar da sugestão do título, o filme não é uma adaptação do livro “As Mil e Uma Noites”, embora se baseie na sua estrutura. Aqui, as histórias contadas Xerazade ao Rei Shahriar como escapatória a uma morte quase certa, passam-se em Portugal. Não num Portugal contemporâneo aos contos do livro, mas no Portugal de hoje, em crise económica e ebulição social. O Portugal de 2013 e 2014, habitado por ricos e pobres, poderosos e insignificantes, trabalhadores e desempregados, ladrões e homens honestos. Marcado pelas consequências da crise, também um Portugal delirante e de excessos.

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“As Mil e Uma Noites” assume-se a partir do fim do seu prólogo como uma obra ficcional baseada em  estilhaços da realidade, numa abordagem “docuficcional” onde convivem génios da lâmpada e greves, animais faladores e equipas de resgate financeiro ou sereias e manifestações à porta da Assembleia da República. A realidade confunde-se com o imaginário, e vice-versa. Como se os vistos gold estivessem escondidos na caverna dos 40 ladrões ou o carro de luxo sorteado na Fatura da Sorte fosse, na verdade, um tapete voador.

Antes ainda do início dos relatos de Xerazade, importa referir o prólogo introdutório deste “As Mil e Uma Noites – O Inquieto”, onde o realizador Miguel Gomes faz um bizarro paralelismo entre uma praga de vespas asiáticas que dizimou colmeias de abelhas em Viana do Castelo com o encerramento dos estaleiros navais daquela região que deixou centenas de trabalhadores no desemprego. Diz Miguel Gomes que há uma metáfora que une estas duas histórias, mas para a perceber é necessário o poder da abstração. “Eu sou estúpido e a abstração dá-me vertigens“, diz Gomes, como justificação para a sua incapacidade de explicar ao espectador a ligação destes dois funestos acontecimentos. Promovendo a reflexão crítica e alicerçando a narrativa numa estrutura de recurso em filme dentro de filme (ou capítulo dentro de capítulo, como mais tarde iria abordar), Gomes dá um kickoff surpreendente, quiçá exótico, para uma obra ousada sobre um Portugal miserável que Camões não preconizou.

Se nos permitem um ligeiro avanço no tempo até ao exato momento onde terminamos a visualização do terceiro volume, O Encantado, podemos dessa forma olhar para trás e analisar O Inquieto como aquele onde o registo satírico e a crítica categórica é porventura mais marcante. É também nele que surge a evidência de que o povo português é capaz de rir de si mesmo, mesmo que num domínio marcadamente onírico. Se não vejamos o primeiro conto narrado por Xarazade, Os Homens com o Pau Feito, que sugere que as políticas da troika no resgate financeiro a Portugal são fruto de uma reversão de uma vergonhosa e permanente ereção perpetrada por um feiticeiro negro ambulante, que tinha o intuito de usurpar uns milhões de euros, oriundos da colecta de impostos, aos nossos pobres governantes.

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O Rei Shahriar deve ter ficado de tal forma entusiasmado com a história que Xerazade lhe contou, que decidiu continuar a ouvi-la com A História do Galo e do Fogo. É aqui que a bizarria toma conta de O Inquieto: existe um galo madrugador na aldeia de Resende que motiva uma queixa em tribunal por não deixar dormir a vizinha. A sentença é a morte. E nesse momento, por meio de risos infindáveis, percebemos que até canto imperial de um galo era alvo de censura.

Mas em Resende habita também um trio amoroso que segue à risca o verso de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver“. A diferença é que aqui o fogo vê-se. Os bombeiros que o apaguem enquanto o galo canta. Este fragmento da segunda história narrada por Xarazade assume um carácter mais deambulatório, com influências de Wes Anderson, mas parece ser claramente o ponto mais fraco e deslocado em O Inquieto.

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No último ato, Xerazade relata a história de O Banho dos Magníficos – que ocorrem no dia de Ano Novo na Praia da Barra – que acompanha um professor de natação (também ele magnífico Adriano Luz) que teme não ter participantes suficientes nesse banho, em virtude das condições climatéricas provavelmente adversas. Misturando baleias e sereias com relatos reais testemunhados por portugueses que sentem a crise à flor da pele, Miguel Gomes acentua neste conto a dimensão onírica da sua obra, mas desta vez começa a preparar terreno para o volume que se segue. O Banho dos Magníficos assume-se como o conto mais cru e revoltante, mais emotivo e confrangedor, na medida em que os relatos são feitos na intimidade da primeira pessoa.

Depois de assumirmos o papel de voyeuristas no primeiro conto e de assistirmos ao cúmulo da liberdade de expressão no segundo, no terceiro somos levados para o realismo do quotidiano português, e ficamos aterrorizados. Não porque não estejamos familiarizados com a realidade que nos assiste, mas porque aqueles íntimos relatos caem em nós que nem os banhos gelados do primeiro dia de janeiro.

Parece que fomos graciosamente conduzidos ao abismo ismo ismo… E por entre esse eco, só há três palavras que conseguimos articular: bravo Miguel Gomes!

DR

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