David Bowie, o homem que mudou o mundo

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Falar de David Bowie é falar de um homem, o homem, que mudou o mundo. A sua carreira emergiu em 1967, sem grande sucesso, apesar da sua estreia incluir canções excelentes como “London Boys”, “Silly Boy Blue” ou “The Gospel According To Tony Day”. Contudo David Bowie só se afirmou plenamente como artista com a edição de “Space Oddity”, cujo single entrou para o Top 10 britânico em Setembro de 1969. Estas datas não devem ser ignoradas pois entre elas existe outra data de referência a ter em conta: Maio de 1968.

 

The Children Of The Revolution

A revolta estudantil ocorrida nesse mês em Paris, uma revolta repleta de utopia e reivindicações políticas, começou por ser uma simples contestação, na Sorbonne, sobre direitos sexuais nos dormitórios de estudantes e acabou por se tornar não apenas num acontecimento nacional mas num facto histórico de repercussões internacionais. Era o início de uma revolução sexual e, consequentemente, de uma transformação profunda das mentalidades não só no Ocidente mas também no resto do mundo, já que esta teve efeitos a nível global.

Era o emergir de uma nova consciência sexual, que os jovens de então abraçaram e a cultura pop (ou parte dela) ajudou a dessiminar por todo o planeta, devido à hegemonia da cultura ocidental. De facto, esta nova consciência sexual não surgiu do nada, tendo sido directamente influenciada pela cultura pop da primeira metade dos anos 1960 e, muito em particular, pelos movimentos hippie e psicadélico, que culminaram no chamado Summer of love, em 1967. O jovem Bowie viveu isto tudo, fã que era de grupos como os Kinks, os Pretty Things, os Yardbirds, os Pink Floyd ou os Who, tendo acabado por se tornar ele próprio uma rock star e um ícone da revolução sexual em curso.


The Children Of The Revolution

 

All The Young Dudes

Independentemente do seu génio musical e artístico, inegável nos primeiros quinze anos da sua carreira, Bowie, social e politicamente, encarnou a revolução sexual em curso, chocando moralistas, derrubando tabus, transgredindo limites. Numa Inglaterra ultraconservadora, onde imperavam inúmeros valores vitorianos e onde a homossexualidade era crime, a sua figura andrógina, carregada de referências nietzchenianas e influências dos Velvet Underground e dos New York Dolls, era mais que uma provocação, era um acto politico transgressivo e incómodo. A comprová-lo a censura de que a capa original de “The Man Who Sold the World” foi alvo, em 1971, e que se manteve até à sua primeira edição em CD, em 1990, volvidos quase vinte anos.  Nesta capa, Bowie surgia reclinado sobre uma espécie de chaise longue com um vestido da autoria do estilista Michael Fish, numa pose que alguns associaram a um quadro do pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti.

All The Young Dudes

Moonage Daydream

Em 1972, o glam rock impôe-se com nomes como T.Rex, Roxy Music, Steve Harley & Cockney Rebel, Gary Glitter, Wizzard, Slade ou The Sweet, anunciando uma era de brilho e extravagância a que corresponderia um conceito de amor pós-romântico, resultante do cruzamento dos valores hippies com o relativo fetichismo da mercadoria da pop art. Isto num mundo marcado pela Guerra fria, em que a ameaça nuclear estava presente no quotidiano e era frequentemente usada pelo discurso do(s) poder(es). A figura de Ziggy Stardust (ou David Bowie), uma estrela rock messiânica e andrógina, que anuncia um Salvador proveniente do espaço, num contexto apocalíptico em que à Terra restavam apenas cinco anos de vida, encaixa na perfeição na estética e ideologia, chamemos-lhe assim, do glam rock. Em “Star”, Ziggy clamava que, como estrela rock, podia mudar o mundo, (“I could make a transformation as a rock n roll star”). Um ano depois, surgiu “Aladdin Sane” (ou “a lad insane”) e, em 1974, “Diamond Dogs”, dois discos marcados pelas ameaças totalitária e nuclear, em que Bowie reinventou genialmente a sua própria imagem – um homem raio, com uma lágrima caída no ombro, e um ser híbrido,  metade cão, metade humano – definindo uma fase em que manteve a sua androgenia e reforçou o seu estatuto de sex symbol subversivo, símbolo da revolução sexual em curso e dos novos e decadentes tempos do amor pós-romântico, a que o glam rock dava voz.

Moonage Daydream

Sons Of The Silent Age

Um sex symbol como David Bowie teria sido impensável dez anos antes, em meados dos anos 1960. A sua ascensão e confirmação parecem querer dizer que o mundo tinha, de facto, mudado radicalmente, em termos de mentalidades, em menos de uma década. Não que todos ou sequer a maioria gostassem ou sequer aceitassem Bowie, pois, muito pelo contrário, longe de ser consensual, Bowie era amado então apenas por uma pequena parte do público. Uma minoria, porém, que o amava profundamente.

Embora Bowie tenha conseguido um primeiro lugar no top de singles britânico, em finais de 1975, com a reedição, em sete polegadas, de “Space Oddity”, e antes “Aladdin Sane”, “Pin Ups” e “Diamond Dogs” já tivessem atingido o topo das listas de vendas de álbuns no Reino Unido, era uma figura polémica olhada com suspeição pelo mainstream e a comunicação social dita séria e respeitável. Esta situação foi-se alterando com o correr dos anos, o que lhe foi permitindo ir se tornando gradualmente mais consensual, o que realmente só aconteceu plenamente no Reino Unido com as edições de “Ashes To Ashes” e de “Scary Monsters” no Verão de 1980, no início da ressaca do punk e da new wave, em pleno thatcherismo. Apesar dos álbuns da chamada fase berlinense, entre 1977 e 1979, durante a qual Bowie se ligou a Brian Eno e, a partir de “Heroes”, a Robert Fripp, dos King Crimson, terem sido aclamados pela crítica e subido nos tops – não obstante entrarem em território da música contemporânea e serem por isso os menos comerciais da sua carreira -,  o êxito comercial de “Scary Monsters” excedeu todas as expectativas, conquistando um público muito mais alargado do que qualquer dos discos anteriores. No entanto, e apesar do seu enorme êxito mundial, “Scary Monsters” acabaria por marcar um fim de um ciclo, e a partir do álbum seguinte: “Let’s Dance”, de 1983, Bowie iria abandonar a sua imagem andrógina bem como a sua postura musical, transgressiva e vanguardista.

Sons Of The Silent Age

Scary Monsters Super Creeps

Depois, da imagem retro do período berlinense, entre 1977 e 1979, durante a qual Bowie filmou o filme “Just a Gigolo”, de David Hemmings, em que contracenou com Kim Novak, Sydne Rome, e Marlene Dietrich, assumindo na perfeição a figura de um jovem official prussiano, com roupas clássicas, nos antípodas dos quimonos e roupas coloridas e extravagantes de uns anos antes, Bowie surge, em “Scary Monsters”, com um fato de palhaço rico e um cigarro na mão, mantendo contudo o ar andrógino que fizera dele um sex symbol à escala mundial, nos primeiros anos da década de 70, anos marcados pela revolução sexual e a contestação juvenil. De facto, quando “Scary Monsters” saiu, em Setembro de 1980, o contexto histórico mundial tinha-se alterado bastante, com uma direita muito radicalizada no poder tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos – Ronald Reagan só foi eleito em Novembro de 1980, mas a sua vitória já era dada como certa uns meses antes –, a guerra fria ao rubro com o boicote aos jogos olímpicos de Moscovo por parte das potências ocidentais, o fim do punk rock, o ressurgimento em larga escala do Heavy Metal  e o advento de uma série de bandas electrónicas, para quem Bowie e os Kraftwerk eram a principal referência. Bowie assume então claramente uma posição política, redimindo-se das declarações à revista Playboy, feitas em 1976, em que dizia que Hitler fora uma das primeiras estrelas rock e que a Grã-Bretanha precisava de um líder fascista. Assim, em “It’s No Game”, lembra o quão degradante é ser-se insultado por fascistas (“To be insulted by these fascists, it’s so degrading”), tal como um ano antes, em “Lodger”, no tema “Fantastic Voyage”, lembrara, numa referência à crescente corrida ao armamento nuclear, o quanto as nossas vidas são valiosas (“In this criminal world, (…) loyalty is valuable but our lives are valuable too”).

Scary Monsters Super Creeps

We Can Be “Heroes”

O êxito comercial, sem precedentes, de “Ashes To Ashes” e de “Scary Monsters”, apesar de Bowie recuperar a sua imagem andrógina e assumir uma posição política forte, só pode ser explicado pelo facto de numa década, entre a edição de “The Man Who Sold The World”, em 1971, e a de “Scary Monsters”, em 1980, o público e as mentalidades terem mudado profundamente, mudança para a qual o contributo de Bowie foi decisivo. De facto, nos anos seguintes, os tops estariam cheios de figuras queer e andróginas, de Boy George a Annie Lennox, passando pelos Visage, os Dead Or Alive, os Human League ou Klaus Nomi, entre muitos outros. Houve, indiscutivelmente, ao longo dos anos 70 uma transformação não só estética e musical mas na forma de pensar e viver a sexualidade, realidade para a qual Bowie deu um contributo decisivo.

Houve, contudo, um enorme retrocesso nos anos 1980, após o surgimento do HIV/SIDA, em larga escala, que fez recuar muitos dos comportamentos e atitudes do pós-Maio de 68. Discursos de culpabilização e de atribuição do aparecimento do novo vírus a um castigo divino, por parte dos sectores mais conservadores e reaccionários, acabaram por surtir efeito ao ponto de grandes discotecas terem tido que fechar as suas portas, devido aos novos receios e preconceitos.

We Can Be “Heroes”

This chaos is killing me

Quando Bowie morre, em Janeiro de 2016, talvez estejamos mais próximos, pelo menos nalguns países, de ter atingido os objectivos da revolução sexual iniciada pelos jovens estudantes da Sorbonne, em Maio de 1968, e para a qual o contributo de Bowie foi de extrema importância. Tem havido no século XXI uma tolerância crescente por formas diversas de sexualidade, e nalguns casos poder-se-á mesmo dizer que há uma nova consciência sexual que se tem alargado a um número cada vez maior de pessoas. No entanto, estamos muito longe de concretizar o que se poderia chamar uma revolução sexual, subsistindo inúmeros tabus e continuando a família patriarcal a ser o modelo de família dominante, embora já não seja o único. Inúmeras cedências e a crise dos anos 1980, provocada pelo advento do virus HIV/SIDA, provocaram consideráveis retrocessos e desvios no que teria sido uma revolução sem precedentes na História. O próprio Bowie desviou o rumo a meio da sua carreira, optando – salvo excepções como “Outside”, em 1995 – por looks mais convencionais, de acordo com estéticas e linguagens musicais mais próximas do mainstream, o que lhe  permitiu conquistar novos públicos e fez dele uma figura aparentemente consensual, como se tem constatado pelas reacções à sua morte recente. Só que o consenso que Bowie suscita não é um verdadeiro consenso, pois se as opiniões convergem quando se fala do seu génio musical e da sua importância para música e a arte em geral, as opiniões divergem quanto aos períodos e às obras em que ele foi realmente importante e único. Mas é assim mesmo: em arte e cultura nada é consensual. Nem sequer Bowie afinal o é, nem poderia ser. Quem ama o Bowie de “Ziggy Stardust” ou de “Heroes” dificilmente pode amar o Bowie de “Never Let Me Down” ou dos Tin Machine. Não é esse falso consenso nem a sua versatilidade discutível que fazem de Bowie um gigante, mas as obras em que inovou e em que radicalmente foi o homem que mudou o mundo.

David-Bowie-Lazarus

João Peste Guerreiro

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