Festival Scope | Filmes da Semana da Crítica de Cannes (V)

Em mais duas das propostas do Festival Scope, o mundano torna-se lírico e delirante, ora num filme filipino sobre um marinheiro a viver no Taiwan ou numa narrativa carioca sobre uma mãe e filha no atribulado processo de mudarem de casa.

 


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Título: O delírio é a redenção dos aflitos
Realizador:  Fellipe Fernandes
Elenco: Nash Laila, Melissa Fernandes, Carmen Melo
Brasil | 21 min


 

festival scope

Tal como muito do recente cinema brasileiro a passar pelo circuito dos festivais de cinema internacionais, a primeira obra de Felipe Fernandes almeja a encontrar um peculiar lirismo por entre as convenções estéticas e temáticas do realismo social cinematográfico. Neste caso, tal exploração é feita sobre a base estrutural de um estudo de personagem em crise, mais especificamente de uma mulher que, numa noite, tem de se mudar do seu apartamento em que vive com a filha.

No início, existe pouco de lirismo ou mesmo do delírio titular na simples história. Somos introduzidos ao ambiente urbano em que vive a protagonista, e somos testemunhas do início do seu dia no ambiente doméstico. Aqui, a câmara acompanha, quase persegue, a atriz pelo espaço, dando a impressão de estarmos a testemunhar uma versão carioca de um dos dramas humanistas dos irmãos Dardenne. Felizmente, com a primeira saída do apartamento cinzento, o filme começa a mostrar provas da sua excelência, com a montagem a conferir à narrativa uma elegância e sofisticação admiráveis e a fotografia a capturar o puro artifício das luzes natalícias que rodeiam a protagonista no seu trabalho como num centro comercial.

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Eventualmente, regressamos com ela ao seu apartamento e aí, mais que uma certa dimensão lírica, o filme começa a sugerir uma desconcertante insanidade quase fantasiosa. O apartamento estremece, o cabelo da atriz começa a cair, e, num final ato de desespero, ela pega na sua filha e procura refúgio numa loja de colchões. Infelizmente, por muito apurada que esteja a estética realista deste filme, seu texto e fútil enfoque na opacidade da personagem principal roubam a experiência da potência que poderia ter alcançado. Na sua forma final, temos aqui o esqueleto de uma ideia admirável e de uma técnica promissora, mas também uma visão infelizmente banal de uma realidade humana que merecia um esforço mais seguro e bem melhor desenvolvido e atuado.

 


Título: Arnie 
Realizador: Rina B. Tsou
Elenco: Whakin C. Maniego, Yu Hsuan Chen, Mei Man Jin
Filipinas/Taiwan | 24 min


 

arnie festival scope

Em contextos de festival de cinema, é fácil cair no erro de separar e contextualizar os filmes pelo seu país de origem. Tais demagogias e classificações, no entanto, são intrinsecamente limitadas, o que se torna evidente quando vemos uma obra como Arnie, um filme de jovem realizadora Taiwanesa, que se passa no porto de Kaohsiung no Taiwan, mas que, graças ao seu protagonista, é uma criação de espírito filipino. Aliás, de um modo que recorda Estive em Lisboa e Lembrei de Você, Arnie é uma obra que vê a sua realizadora expor a sua pátria de um ponto de vista estrangeiro.

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Essa perspetiva pertence à personagem titular, um marinheiro filipino que se encontra há quase um ano a trabalhar nesse já referido porto Taiwanês. Trabalhando por miseráveis ordenados, ele planeia pedir a sua namorada em casamento. Para tal, necessita da ajuda dos seus companheiros de trabalho, a maior parte deles também filipinos, que o auxiliam a comprar um anel de noivado numa cena de incompreensão quase cómica entre a vendedora e o marinheiro, ambos incapazes de compreender as palavras do outro. Inevitavelmente, o dinheiro e o suposto ouro sobrepõem-se à linguagem e Arnie prepara-se para fazer o feliz pedido através do Skype. Infelizmente para ele, este é um filme sobre incapacidade de comunicação tanto quanto é sobre empatia e tal chamada virtual nunca se realiza.

Ao invés disso, ele descobre uma verdade dolorosa e passa o resto da noite a tentar afogar as suas mágoas e a vaguear melancolicamente pelo porto que é agora sua casa. Nessa sua noite de angústia ele tem um encontro fugaz com outra alma perdida. Uma mulher taiwanesa que olha desesperada para as águas do porto. Nesse mundano encontro, desprovido de fúteis palavras, Rina B. Tsou conjura uma melancolia e misticismo que elevam o filme inteiro a uma obra de tocante e misterioso humanismo. A sua estética pode ser de banal realismo, mas nessa passagem, a realizadora justifica o seu exercício e oferece um belíssimo momento de compaixão de tal modo tocante, que mesmo o final trágico não é tão sufocante como poderia ser nas mãos de um cineasta em busca de mais fáceis provocações.

 

CA


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