Festival Scope | Filmes da Semana da Crítica de Cannes (VI)

Um sonho grego e um pesadelo canadiano marcam presença entre as curtas disponibilizadas pelo Festival Scope, que marcaram já presença durante a Semana da Crítica em Cannes.

 


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Título: Oh What a Wonderful Feeling
Realizador:  François Jaros
Elenco: Karelle Tremblay, Frédérike Bédard, Catherine Hughes
Canadá | 16 min


 

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No mais recente trabalho do realizador canadiano François Jaros, observamos uma noite na vida de uma jovem prostituta. Tirando uma altercação violenta que a leva a ela, suas colegas e seu proxeneta à polícia, e a ternurenta celebração da reforma de uma das prostitutas, esta noite parece ser apenas parte de uma banal e mundana rotina. Com este tema e essa condição de observação do quotidiano, seria de esperar que o filme, como tantos outros, seguisse uma estética realista típica do circuito de festival e do moderno cinema independente.

Numa completa recusa de tais convenções realistas, Oh What a Wonderful Feeling é uma sonhadora alucinação noturna, em que o mundano se transmuta em fantástico e os ritmos da vida se distendem e deformam em passagens fantasiosas. Nos momentos iniciais em que testemunhamos o atropelamento de uma serena raposa, e nas últimas cenas, em que o uso de imagética metafórica começa a tornar-se completamente inescapável, essa condição fantasiosa é bastante difícil de ignorar, mas o grande génio de Jacos está no modo como contamina o quotidiano com a atmosfera de um pesadelo cordado.

De todos os aspetos técnicos que ajudam à materialização desta desconcertante visão autoral, a sonoplastia é a de maior destaque. Por um lado, a música de Olivier Alary confere a todo o exercício, a atmosfera de uma obra esquecida de David Lynch, mas é o modo como esta se insere nas paisagens sonoras que realmente singulariza este filme. A partir de seus abstratos rugidos, um parque de estacionamento torna-se numa estalagem de bestas metálicas, um pássaro que cai morto do céu é como um tiro ao embater no asfalto e o silêncio de um encontro sexual com um cliente é como um asfixiante suster da respiração, como que em antecipação de algo tenebroso. Mesmo que a narrativa e retrato humano deixem muito a desejar pela sua intencional opacidade, é praticamente impossível não encontrar valor nesta obra, nem que seja a um nível puramente formalista.

 


Título: Limbo
Realizadora: Konstantina Kotzamani
Elenco: Felix Margenfeld, Aggelos Ntanos, Lucjano Cani
Grécia | 30 min


 

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É um grande cliché da crítica cinematográfica descrever um filme como algo semelhante a um sonho, mas, por vezes, essa descrição é tão apropriada que é impossível resistir a essa convenção. De facto, Limbo, o mais recente filme da realizadora grega Konstantina Lotzamani, é um desses filmes.

Mais do que uma narrativa, o filme apresenta-se como uma coleção de momentos e sensações, de sons naturais e visões do outro mundo. Começamos por ser introduzidos a um grupo de rapazes numa localidade costeira na Grécia. Entre eles, fala-se de uma baleia que deu à costa, e, em discussão juvenil, eles interrogam-se sobre a categorização da baleia como um peixe ou como um mamífero. Mais tarde, a estes doze rapazes parece juntar-se um novo, uma figura de inatural brancura que parece existir no limbo entre a vida e a morte, entre realidades, como um espectro físico e de intenções inescrutáveis. A partir dessa situação inicial, o filme desencadeia-se numa já mencionada coleção de momentos de difícil compreensão, uma procissão religiosa é interrompida quando uma figura da virgem entra em combustão espontânea, um dos miúdos parece falar com esse ídolo religioso meio carbonizado, e faz-se uma procissão misteriosa até à carcaça do gigante aquático.

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A experiência global desta obra é uma de imensa opacidade conceptual e forte carga simbólica de significado obscuro. Para muitas audiências, tal indefinição e mistério poderá ser algo repelente, mas para quem tiver suficiente generosidade enquanto espetador, Limbo contém em si visões impressionantes. Como pinturas sacras acompanhadas por uma sinfonia abstrata de ensurdecedores ruídos naturais e artificiais, este filme conjura uma atmosfera sonhadora e nebulosa, estando mais interessado nas reações primordiais que consegue despertar no seu público que em qualquer exploração textual de uma história humana.

 

CA


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