Fogo no Mar, em análise

Um poema filmado, uma pintura humanista e um documentário avassalador, Fogo no Mar de Gianfranco Rosi arrecadou ao seu realizador um merecido Urso de Ouro.

Apesar de se apresentarem como os grandes eventos cinematográficos do ano é muito raro ver um dos mais importantes festivais de cinema europeus a premiarem, com a sua mais alta honra, um documentário. Filmes narrativos de ficção são a norma, mas, ocasionalmente, aparecem obras tão inegavelmente majestosas que mesmo os mais conservadores júris se deixam arrebatar pelo seu poder. Isso ocorreu em 2013 quando Gianfranco Rosi arrecadou o Leão de Ouro em Veneza com Sacro GRA, e voltou a acontecer este ano em Berlim, onde o cineasta italiano voltou a provar ser um dos grandes autores do cinema documental atual ao arrecadar o Urso de Ouro pelo seu Fogo no Mar.

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Se, em Sacro GRA, Rosi explorou uma autoestrada italiana e daí concebeu um poema tonal, Fogo no Mar é uma elegia cinematográfica à ilha de Lampedusa durante o auge da crise dos refugiados. Esse tema tem vindo a tornar-se cada vez mais presente no cinema documental o que é perfeitamente justificável e necessário, afinal, trata-se da grande crise humanitária dos nossos tempos. Sendo Rosi um dos grandes humanistas do cinema italiano contemporâneo, não é de estranhar que o seu olho e câmara fossem atraídos pelas possibilidades fílmicas e representativas desta história que, nas suas mãos, nunca é apenas mais uma banal manchete de jornal, mas sim uma pintura da natureza humana feita através da máquina de empatia que é o cinema.

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Sob este olhar diretorial, a ilha de Lampedusa é tornada num microcosmos de contrastes, nunca verbalizados por Rosi, mas cuidadosamente desenhados pela sua observação dicotómica. Por um lado, o mar que circunda todo o território é-nos, desde início, exposto como um local onde acontecem inimagináveis desgraças humanas, onde as suas profundezas são um cemitério e a sua superfície um palco para alguns dos mais horrendos espetáculos de sofrimento que conseguimos conjurar. Mas por outro lado, a ilha é casa de uma comunidade antiga e pacífica, onde a grande fonte de subsistência é a pesca – do mar vem a vida – como já acontece há gerações. Por entre as paisagens rurais e os cais cheios de barcos de pesca, ouve-se a rádio local que está sempre a passar música siciliana, testemunha-se a preparação de um jantar de família e, acima de tudo, acompanhamos as inocentes aventuras de Samuele.

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Tal como a maior parte das crianças desta ilha, ele vem de uma família de pescadores, e, apesar de a sua terra ser o cenário de tanta desgraça, esses horrores estão sempre na periferia do seu mundo, invisíveis ao seu olhar inocente e mais preocupado com a manufatura de fisgas para tentar caçar uns pássaros. Ele é, na sua essência cinematográfica, um protagonista de narrativas neorrealistas trazido ao documentário moderno. É fácil imaginar este intrépido miúdo a protagonizar uma grande obra do pós-guerra assinada por de Sicca, e é precisamente no seu charme, carisma e inocência que Rosi ancora grande parte de Fogo no Mar, observando com deleite a ingenuidade infantil que ainda consegue existir incólume num mundo onde, paralelamente, outras tantas crianças morrem à fome ou desidratadas no porão de uma embarcação raquítica à procura de liberdade.

Não se pense, contudo, que Rosi está, de algum modo a criticar abertamente a inocência ou a ignorância das pessoas de Lampedusa. Mais do que acusar ou comentar, este realizador documenta e reflete sobre a beleza da vida humana e seus mistérios. Mesmo em momentos carregados de simbolismo ele nunca permite que os seus sujeitos sejam alguma vez reduzidos a ideias abstratas. Veja-se, por exemplo, o modo como Manuele tem de usar uma pala para curar o seu olho preguiçoso, sendo obrigado a olhar o mundo através de um diferente ponto de vista para ver se consegue, no futuro, apreciar melhor a realidade à sua volta. Apesar do potencial para tornar Samuele num símbolo de uma Itália que tem de abrir os olhos para realidades contemporâneas e para a crise humanitária, Rosi nunca perde de vista que Manuele é também ele uma pessoa merecedora de empatia por parte do cineasta e do espetador.

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O médico que, numa cena, vemos examinar Samuele, não por causa do seu olho mas sim devido aos seus problemas com ansiedade, é, na verdade, o único ponto unificante das duas realidades díspares de Fogo no Mar, a paz doméstica da família do rapaz e os horrores dos refugiados em alto-mar. Na única cena expositiva de todo o filme, é este médico deprimido que nos elucida em relação aos danos físicos e psicológicos que afetam os refugiados, ao mesmo tempo que pinta também um retrato de outro tipo de feridas, nomeadamente, a sufocante mágoa que se abate sobre quem os tenta ajudar, mas vive assim rodeado de morte e desespero. Ouvir este homem descrever a tortura que é, para ele, autopsiar os cadáveres de crianças que morreram nos barcos, é um dos murros no estômago mais viscerais que o cinema de 2016 tem para oferecer.

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A contextualização oferecida pelas palavras do médico é uma grande ajuda pois, tirando isso, a câmara de Rosi entra nos barcos e nas multidões de homens, mulheres e crianças em angústia sem nunca se preocupar em nos explicar a situação. É um testamento ao respeito que Rosi tem, tanto por estas pessoas que filma como pela inteligência do seu público, possibilitando assim que o filme mantenha o seu registo de observação passiva e quase lírica. Uma grande diferença entre os dois mundos de representação é, no entanto, o modo como as filmagens dos refugiados nunca têm o mesmo tipo de intimidade casual que as da família.

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Muitas vezes, os sujeitos olham desconfiados para a câmara, e, num momento triunfal do filme, um grupo de homens de Níger fala da sua viagem ao longo de África, em busca de uma vida melhor e depois em fuga do Daesh, eletrizando o filme com uma vitalidade que explode organicamente do desespero em evidência. É então também nestas cenas que o génio estético e mecânico de Rosi se mostra em todo o seu esplendor. Atuando como o seu próprio cameraman e diretor de fotografia, Rosi aproxima-se das caras dos atores, criando tableaux de poder quase Bermaniano, e também mostra a magnificência das paisagens naturais com um luxo pictórico que assombra. Da crueza e dor, Rosi extrai beleza e imagens inesquecíveis.

No final, Fogo no Mar é uma obra necessária e invulgarmente sagaz no que diz respeito à natureza humana. Se ainda havia dúvidas que Rosi é um dos grandes mestres do cinema atual, este filme apaga-as definitivamente. Como nota final, reflitamos sobre o título do filme e sua magnífica natureza multifacetada. Por um lado, Fogo no Mar é o título de um antiga canção romântica que uma mãe pede ao locutor da rádio que passe, em honra do seu filho que, devido às cruéis tempestades marítimas, não pode ir pescar e assim não tem como fazer da vida. Por outro, essa mesma senhora recorda-se de como, nos anos de guerra, os barcos dos refugiados passavam à noite junto da ilha e seus foguetes de sinalização pintavam o mar de vermelho, como se estivesse a arder. Duas realidades em comunhão, uma bela e romântica e outra horrenda e dolorosa – assim é o nosso mundo.

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O MELHOR: A comparação silenciosa da história de um pescador que se lembra da dureza das suas aventuras passadas e o tormento dos refugiados. Não há acusação no olhar de Rosi, mas simples observação das diferentes experiências humanas.

O PIOR: Para muitos, a falta de contextualização política ou intenções declarativamente militantes serão um claro problema, mas nada disso se integraria no tipo de poema humanista que Rosi aqui criou.


 

Título Original: Fuocoammare
Realizador:  Gianfranco Rosi
Leopardo Filmes | Documentário | 2016 | 114 min

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