A Forma da Água

A Forma da Água, em análise

A Forma da Água” é o filme com mais nomeações para os Óscares do ano e é também o mais recente triunfo de Guillermo del Toro, um realizador cuja paixão pela sua arte é inebriante.

a forma da agua critica

A única pessoa que podia ter realizado “A Forma da Água” é Guillermo del Toro. Tal afirmação pode parecer um pouco redundante pois, afinal, só houve uma pessoa a realizar “A Forma da Água” e foi esse cineasta mexicano, mas o que se quer aqui dizer é que este é um filme onde o estilo, gostos e temas habituais do autor parecem ter chegado a uma espécie de apoteose cinematográfica. Para quem não o tiver visto, uma descrição sumária da sua narrativa e pontos de referência poderá tornar a assinatura autoral de del Toro em algo mais óbvio.

Esta á a história de Elisa Esposito, uma mulher muda e órfã que trabalha nas limpezas de um edifício de investigações ultrassecretas do governo americano durante os anos 60. Aí, ela conhece uma criatura aquática de aspeto antropomórfico que é prisioneira da instituição americana. Após vários dias, ao longo dos quais ela ensina o seu companheiro a comunicar com linguagem gestual, Elisa apaixona-se pelo homem-peixe e, quando a sua vida é posta em risco, ela tenta salvá-lo. Tudo isto é filmado num estilo que mistura os cânones do terror clássico de série B com o romantismo de musicais dos anos 30, o tipo de comentário social populista que em tempos era tipificado pelas obras de Stanley Kramer e com uma inocência fantasiosa que relembra os contos-de-fadas tornados cinema de Jean Cocteau.

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Tal lista de referências não é somente uma mostra de conhecimento crítico, mas uma necessária informação para se perceber o jogo e sensibilidade de del Toro. Mais do que qualquer outro cineasta da atualidade, os filmes deste autor mexicano vibram com um palpável amor pela sétima arte, seus códigos, seus clichés, seu artifício e sua inefável magia. Ao contrário dos vanguardistas europeus de outros tempos, del Toro não emprega estas referências como base de experimentação audiovisual, mas sim como uma carta de amor à experiência de ver filmes. Esta dinâmica pode fazer com que, para audiências menos generosas, del Toro pareça um cineasta um tanto ou quanto reacionário. Isso não é uma crítica injusta, se bem que, para quem consiga sintonizar-se com o entusiasmo cinéfilo do realizador, obras como “A Forma da Água” são pequenas preciosidades de júbilo e prazer.

Invocando novamente o nome de Cocteau, há que apontar como Guillermo del Toro inicia “A Forma da Água” com um prólogo narrado cuja mensagem subjacente recorda o pedido que o cineasta francês fez à audiência do seu “A Bela e o Monstro” em 1946. Ao posicionar a narrativa do seu romance interespécies como um conto de fadas, que inclui uma princesa silenciosa a flutuar nas águas oníricas, o realizador está a pedir ao espetador que deixe para trás questões de razão e causalidade e se entregue de coração aberto à história que del Toro e companhia estão prestes a partilhar. Esse tipo de aviso ou preparação tonal é necessária pois, de outra, forma há muitos elementos do filme que são extremamente difíceis de aceitar.

O principal desses elementos é precisamente a paixão que desabrocha entre Elisa e o homem-peixe. Se este fosse um filme minimamente realista, tal desenvolvimento narrativo exigiria uma certa quantidade de desenvolvimento emocional entre o par central. Contudo, neste tipo de conto-de-fadas, o amor à primeira vista é somente mais um código estilístico indispensável. Desse modo, um guião pobre em interioridade psicológica é a única base textual necessária para a manifestação de um amor capaz de fazer pessoas arriscar tudo o que têm para preservar a sua maravilha. A prestação silenciosa de Sally Hawkins também ajuda, conferindo complexidade adulta e rasgos de desespero cru e contentamento erótico a uma figura que, de outro modo, poderia parecer demasiado infantilizada ou forçosamente inocente. Nas mãos da atriz, acreditamos nos sentimentos de Elisa e, por conseguinte, acreditamos na proposta emocional do filme.

Os outros atores têm papéis muito menos complexos, mas, de forma geral, todos evitam violar o jogo estilístico do filme ou reduzirem as suas figuras a cifras desumanas. Michael Shannon, como o vilão, é quem se aproxima mais desses excessos, se bem que a sua mera presença já é, por si só, algo reminiscente de um monstro de desenhos animados. Como a melhor amiga afro-americana e com problemas matrimoniais de Elisa, Octavia Spencer traz ao filme o seu charme usual e sempre que del Toro se foca na atriz, especialmente em momentos de tensão, ela traz genuína intensidade ao seu papel cliché. Ainda mais perfuntório é o papel de Richard Jenkins como o vizinho homossexual de Elisa, cuja idade lhe pesa nos ombros assim como a crescente obsolescência das suas pinturas publicitárias num mundo moderno. Pela sua parte, Jenkins redime o papel com uma presença calorosa e afável que, apesar disso, por vezes resvala em surpresa e abrasão quando a sua personagem é confrontada com o grotesco imenso desta intriga.

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A juntar-se a estes atores está Michael Stuhlbarg no papel de um cientista soviético infiltrado no instituto que guarda a criatura. O ator, como sempre, é estupendo, mas o papel é, de longe, o pior do filme e o seu enredo secundário é uma enorme perda de tempo que termina com um dos instantes mais violentos deste conto-de-fadas cheio de sexo, tortura e dedos necróticos. Há, como é evidente, ainda Doug Jones no papel do homem-peixe, uma figura de grande exotismo e movimentos animalescos a que o ator confere uma fisicalidade tão imponente como sensual. Sim, é uma combinação bem estranha, mas este é um filme de Guillermo del Toro e combinações bizarras como um sex symbol com guelras que gosta de comer a cabeça de gatos inocentes é algo com que temos de nos confrontar.

Ideias e imagens como essa são a grande mais-valia do filme, cuja crítica social (os heróis são mulheres, homossexuais, afro-americanos e imigrantes na América dos anos 60) é óbvia e feita sem uma pinga de nuance. Enfim, não é um filme perfeito, mas o amor de del Toro pelo material supera muitos dos seus problemas. Quando Elisa, numa sequência de sonho, dança com o seu amado Monstro da Lagoa Negra num número musical tirado diretamente dos clássicos de Fred e Ginger, quase apetece aplaudir de pé a audácia da mente que conjurou tal imagem e tão generosamente a oferece aos espetadores.

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Muito falámos da visão de del Toro e do trabalho dos atores, mas convém mencionar que este é um feito técnico do mais alto gabarito. Com um orçamento de filme independente, “A Forma da Água” é algo próximo de um milagre cinematográfico onde todos os seus elementos formais funcionam em perfeita harmonia como as roldanas de um relógio suíço. É impossível imaginar a cenografia estilizada de Paul D. Austerberry sem a iluminação esverdeada e aquosa de Dan Laustsen, ou as transições fluidas de Sidney Wolinsky sem as melodiosas composições de Alexandre Desplat. Não tenham dúvidas, esta é uma equipa de mestres da sua arte e o resultado final bem o evidencia. Quando, no autocarro noturno, Elisa mira as gotículas de água na janela e acompanha com o dedo a sua dança colorida, “A Forma da Água” mostra-nos por que razão vamos aos cinemas. É para experienciar visões como esta, tão belas, estranhas, problemáticas e transcendentes como o amor, cuja forma, diz del Toro, é como a da água. Fluida, indefinida e capaz de nos envolver. Também o cinema de del Toro é assim.

A Forma da Água, em análise
A Forma da Água

Movie title: The Shape of Water

Date published: 28 de January de 2018

Director(s): Guillermo del Toro

Actor(s): Sally Hawkins, Doug Jones, Michael Shannon, Octavia Spencer, Richard Jenkins, Michael Stuhlbarg

Genre: Romance, Drama, Fantasia, 2017, 123 min

  • Cláudio Alves - 90
  • José Vieira Mendes - 85
  • Daniel Rodrigues - 83
  • Filipa Machado - 70
  • Rui Ribeiro - 95
  • João Fernandes - 80
  • Ângela Costa - 95
  • Luís Telles do Amaral - 90
86

CONCLUSÃO

Através de referências a clássicos do cinema de outros tempos e um gosto pessoal que tende a celebrar o bizarro e grotesco, Guillermo del Toro deu-nos, em “A Forma da Água”, uma das mais belas e peculiares histórias de amor que agraciaram o grande ecrã nos últimos anos. Atores e criativos em topo de forma conferem ao projeto uma boa dose de puro virtuosismo cinematográfico capaz de elevar até o mais estrambólico projeto aos píncaros de excelência artística. Enfim, fãs de del Toro deverão adorar. Quem já teima com o seu estilo pessoal devia ficar bem longe.

O MELHOR: Os momentos em que todo o filme parece explodir em amor cinéfilo, quer seja o já referido número musical ou todos os momentos em que a câmara se aventura pelo ornamentado cinema, por cima do qual se situa o apartamento de Elisa.

O PIOR: As personagens estereotipadas e o débil discurso sociopolítico do filme.

CA

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One Response

  1. Frederico Daniel 16 de Agosto de 2018

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