Ghost in the Shell: Agente do Futuro, em análise

Ghost in the Shell: Agente do Futuro é uma espécie de cruzamento de Akira com Blade Runner que, sem conseguir chegar tão longe como qualquer um destes, é um precioso passo em frente no Estado de Arte Estético do cinema de ficção científica.

À distância, o fenómeno pode parecer difícil de explicar, mas quando Ghost in the Shell foi lançado em formato de manga, pela primeira vez em 1989, o mundo era um lugar visceralmente diferente.

Estavamos na era pré-internet e eramos admitidamente muito mais inocentes. Nessa altura, a fábula ciberpunk japonesa sobre a migração de almas humanas para as máquinas fez renascer as discussões iniciadas pela literatura de Philip K. Dick e William S. Burroughs e pelos objetos de culto cinematográficos Blade Runner (1982) e Exterminador Implacável (1984). De facto, e de alguma forma que ainda não estávamos preparados para prever, era o advento quase-perfeito do futuro que estaria por vir.

Quase 30 anos depois, o mistério da tecnologia é-nos cada vez menos nebuloso, mas o encantamento inebriante persiste. Somos inseparáveis do iPhone, salivamos com experiências de realidade aumentada, sentimos suores frios perante a perspetiva de um isolamento das redes sociais e aprendemos a categorizar minuciosamente cada emoção com o meme perfeito para a ocasião. No fundo, estamos algo desligados, dessensibilizados para muitas das coisas que, um dia, nos definiram como humanos. Um pouco como se deambulássemos fantasmagoricamente, saltitando de uma tecnologia para outra, com demasiadas ocupações para ouvirmos o nosso próprio coração a bater.

Ghost in the Shell: Agente do Futuro baseia-se no franchise homónimo de culto e sucesso internacional de ficção científica que teve origem na supracitada manga, e cujo sucesso proliferou ainda mais com o respetivo e ilustre anime lançado em 1995.

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Esta adaptação live-action e, desta feita, consideravelmente americanizada, encontra numa escultural Scarlett Johansson a nossa protagonista: Major é uma agente de operações especiais, híbrida de humano e ciborgue. A primeira da sua “espécie”, é o soldado perfeito, com a missão a parar os criminosos mais perigosos do mundo, mas enquanto persegue um misterioso hacker homicida, Major experiencia uma série de falhas no seu sistema que desencadeiam uma crise de identidade e a consequente procura pela verdade da sua origem.

Os fãs dedicados ao original têm preocupações perfeitamente justificadas em relação à adaptação – afinal, Hollywood não tem propriamente o registo mais imaculado de reinterpretações de ficção científica complexa que consiga coexistir com entretenimento escapista de qualidade. As boas notícias é que podem ficar (mais ou menos) descansados: esta adaptação mainstream do clássico de culto japonês não corrompe a saga de formas imperdoáveis, conseguindo inclusivamente transpor alguns dos seus mais cruciais elementos com mestria, resolvendo ainda um dos seus mais críticos problemas (aqui em particular, a noção de ritmo, que historicamente o tem vindo a assombrar).

De facto, havia muita coisa que poderia ter corrido (muito) mal em Ghost in the Shell, mas Rupert Sanders (A Branca de Neve e o Caçador, 2012) conseguiu ainda assim uma adaptação respeitosa e respeitável que procura discorrer sobre os mesmos temas da identidade, posse, consentimento e evolução (ou degeneração?) tecnológica.

Parte deste sucesso deve-se ao facto de esta não ser uma adaptação cena-a-cena do manga/anime, mas, ao mesmo tempo, conseguir recuperar alguns dos seus momentos mais icónicos. 50% de legado e 50% de reinterpretação, Ghost in the Shell é um blockbuster evocativo que combina temas filosóficos pós-modernos e questões morais com uma estética ciberpunk verdadeiramente deslumbrante, utilizando a tecnologia 3D (finalmente!) de uma forma imersiva e que efetivamente permite ao espectador habitar este universo indelével. A paisagem urbana é uma selva de néons onde os hologramas das mensagens de marketing são tão altos como os arranha-céus. É uma cidade deslumbrante, idiossincrática, mas desprovida de alma, uma distopia futurística que grita por ser vista no maior ecrã possível.

Infelizmente, e para todos os efeitos, se pressentia um “mas” a caminho estava totalmente certo.

A narrativa é, como expectável, ligeiramente convulsa. Por um lado, há (necessárias) simplificações que funcionam neste que é, nuclearmente, um estudo psicológico de uma mulher que procura o seu lugar no mundo enquanto nos obriga simultaneamente a examinar a relação e dependência humana da tecnologia. Por outro lado, desestabilizam-se os momentos de sobre-exposição que perdem o consequente impacto que poderiam almejar e um pathos do vilão, claramente inspirado no mito de Frankenstein, promissor, mas desanimadoramente infrutífero na sua conclusão.

À experiência falta ainda e inequivocamente um compromisso ou gancho emocional. Fica a ideia de que, Ghost in the Shell deambula sem um coração real, operando de forma fria e distante, mesmo quando os seus desenvolvimentos parecem caminhar para uma qualquer forma de investimento afetivo.

Mas se esta falta de alma – ou coração, se preferirmos – era consideravelmente previsível, a maior e possivelmente mais real frustração advém das copiosas mas insípidas cenas de ação, que lembram derivados pouco inspirados de Matrix e Marvel, dirigidos com pouco nervo criativo para quem já assistiu, apenas neste ainda curto século, à icónica toada violenta de Oldboy (2003), à frenética brutalidade de The Raid (2011), à coreografia imaginativa de Kill Bill (2003) ou à reinvenção da ação à moda antiga de John Wick (2014).

Que a produção de Ghost in the Shell foi fortemente afetada por uma polémica em torno do casting da personagem principal como uma mulher caucasiana – sendo uma personagem japonesa no material original e todas as consequentes adaptações – também já sabíamos. Os protestos contra o chamado “whitewashing” tornaram-se ainda mais fortes quando surgiram rumores de que a equipa responsável pelos efeitos visuais do filme tinha realizado testes para tornar as faces os seus protagonistas mais… asiáticas. Nesse âmbito, podemos atestar que não passam de rumores.

Não obstante estas apreensões de partida e toda a polémica despoletada pelo suposto whitewashing que permeia a adaptação, Scarlett Johansson emerge a escolha perfeita para o papel, fazendo brilhar uma espécie de característica etérea e imensamente magnética. Fria e destrutiva, mas com relances de humanidade, a sua Major vem cimentar-lhe o estatuto de uma das grandes estrelas da sua era. Infelizmente, o próprio desenho da personagem é também imperfeito – se por um lado o filme lhe acrescenta inteligentemente um passado que parece poder vir a ser um elo de ligação emocional, por outro, a falta-lhe a sensibilidade de o desenvolver e concluir. Um remate agridoce porque Major acaba por não se revelar cativante ou enigmática como poderia ser – o que, em boa verdade, não é culpa da atriz que a interpreta, mas do arco deficiente que a envolve.

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À imagem da sua vistosa protagonista, Ghost in the Shell é deslumbrante e, em certa medida estética e cinematograficamente, incontornável. Todavia, continua pairando por aí, em busca da sua real identidade, com uma alma perdida no tempo que lhe asserte uma razão de ser.

Afinal de contas, a este fantasma… talvez só lhe faltasse ser um pouco mais humano.

O MELHOR: A estética ciberpunk vanguardista indomavelmente inventiva. 

O PIOR: A falta de um gancho emocional que envolva o espectador, decorrente do desperdício da alavanca da história de origem de Major.



Título Original:
Ghost in the Shell
Realizador:
Rupert Sanders
Elenco:
Scarlett Johansson, Pilou Asbæk, Takeshi Kitano
NOS Audiovisuais | Ação, Crime, Ficção Científica | 2017 | 107 min

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