Os Olhos da Minha Mãe, em análise

Os Olhos da Minha Mãe é um desesperante filme de terror centrado na arrepiante história de uma jovem, filha de imigrantes portugueses, que vive isolada no interior dos EUA.

os olhos da minha mãe

No cinema de terror americano existe uma fórmula que raramente é contrariada. Primeiro, estabelece-se uma ideia de “normalidade”, quer seja por cenas de quotidiano ou pelo uso de significantes que nos indiquem essa mesma ideia. A isto, acrescenta-se um elemento dissonante que vem subverter, violar e estilhaçar essa ideia. Seguidamente, observamos o pesadelo criado pela violação da “normalidade” e, usualmente, ancoramos a nossa experiência na narrativa individual de uma ou mais personagens vitimadas pelo jogo de subversão proposto pela história.

Tal padrão é quase classicista na sua eficiência diabólica e é comum tanto em Hollywood como na esfera mais indie, o que não impede que hajam algumas notórias exceções. Os Olhos da Minha Mãe é uma delas, sendo um dos mais bizarros e inclassificáveis filmes de terror americanos dos últimos anos. De um ponto de vista analítico, a primeira longa-metragem de Nicolas Pesce tem mais em comum com o movimento Extremista do terror francês do que com qualquer outra produção do seu lado do Atlântico. Por outras palavras, é um filme apoiado numa proposta repleta de ideias, situações e comportamentos absolutamente chocantes, repugnantes e fortemente niilistas na sua filosofia subjacente. Para além do mais, trata-se de uma obra em que nunca existe qualquer ideia de “normalidade” pronta a ser violada, mas sim uma constante atmosfera de desconforto que vai lentamente hipnotizando a audiência ao mesmo tempo que a sufoca.

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Tal natureza de invariável inquietude é bem exemplificada pelos momentos iniciais do filme. Aí, Pesces apresenta-nos um camião algures no interior frondoso dos EUA. As cores naturais da paisagem são roubadas pelo uso de preto-e-branco e sua usual majestade é também inexistente, sendo que Pesces recusa-se a deixar a audiência apreciar a beleza convencional do seu cenário. Bem pelo contrário, o cineasta faz-nos testemunhar a expansão de estrada deserta através de uma perspetiva invariável num plano de prolongada inação. Antes que o público aborrecido comece a sair da sala, o vulto distante de uma pessoa quebra o rio de alcatrão cinzento. Quando o camião para, e o condutor sai do seu interior para acudir a mulher mutilada que desfalece no meio da estrada, a imagem finalmente corta para outra ainda mais alienante. Agora é um plano picado perpendicular à estrada que reduz os intervenientes da cena a pontos negros numa composição de geometria inorgânica.

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A tensão criada pela espera é inegável e convém sublinhar que este é um filme que, apesar de relativamente breve, decorre com a mesma urgência e velocidade que uma calota polar. No entanto, não é tanto a lentidão desmesurada que eleva esta introdução ao patamar de um peculiar pesadelo, mas sim a fotografia de Zach Kuperstein. Apesar da leve pátina de intemporalidade clássica que um filme a preto-e-branco costuma sugerir, Os Olhos da Minha Mãe é um trabalho fotográfico que pertence firmemente à era digital. Dizemos isto pois estamos perante um filme profundamente escuro, onde a penumbra da noite consome toda a imagem numa negrura limpa de grão ou outros artefactos como uma piscina de petróleo, e onde os conceitos fotográficos de chiaroscuro são levados a enervantes extremos. Efetivamente, a fotografia consegue obliterar qualquer noção de confortável familiaridade.

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Voltando à narrativa do filme, Os Olhos da Minha Mãe pode começar com esse episódio no meio de uma estrada vazia, mas rapidamente dá um salto temporal para o passado e para uma quinta isolada de imigrantes portugueses a viver no meio do nada. A nossa protagonista é Francisca, a filha desta unidade familiar, que testemunhamos ser educada pela mãe, uma antiga cirurgiã oftalmologista em Portugal, que mostra os segredos do seu ofício à jovem através da dissecação da cabeça de uma vaca, mostrada em repugnante detalhe.

A paz da família é rapidamente aniquilada pelo aparecimento de um estranho homem num dia em que, por acaso, o patriarca está ausente. Para quem seja um assíduo espetador de cinema de terror, não será surpreendente saber que a mãe de Francisca é brutalizada e assassinada pelo estranho e que, no seguimento do homicídio, o pai da jovem e a própria criança põem em ação a sua psicótica vingança contra o criminoso. Não querendo revelar demasiados detalhes sobre os horrores da história, fica só o apontamento que, nos momentos passados dentro do interior sombrio de um celeiro tornado prisão, Os Olhos da Minha Mãe se torna num torture porn de magistral austeridade. É uma proposta estilística tão estranha como a personagem que perpetra os seus horrores, a jovem e apática Francisca cujas atitudes são distantes de qualquer ideia de moralidade ou razão humana e fazem dela algo próximo de um demónio inescrutável dentro da sua própria história de vida.

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Os Olhos da Minha Mãe dá mais dois significativos saltos temporais, desta vez na direção do futuro, mostrando-nos Francisca já adulta e agora encarnada por Kika Magalhaes. Por padrões convencionais de realismo cinematográfico, o trabalho de Magalhaes não será particularmente primoroso mas, dentro do contexto do filme, o seu desempenho unidimensional e opaco cria o perfeito equilíbrio entre uma personificação do Mal puro e uma visão expressionista de uma assassina antissocial que viveu quase toda a sua existência isolada do mundo exterior ao seu pequeno circo de horrores. Na verdade, mesmo que fosse terrível, o trabalho de ator pouco faria para prejudicar este filme que é, na sua essência, um exercício experimental tão formalista que até o seu mais lacerante golpe de real empatia emocional, não é o produto de contexto ou realidades humanas, mas sim de uma série de precisos tableaux edificados especificamente para obter essa reação da audiência.

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Em suma, Os Olhos da Minha Mãe é um triunfo de puro formalismo aplicado a uma proposta de cinema de terror. Mesmo assim, negar o impacto visceral do seu conteúdo seria inapropriado e é exatamente a união de história niilista e execução rigidamente virtuosa que fazem deste filme algo próximo de uma obra-prima moderna do seu género. Este é um filme breve, indescritivelmente desagradável e até nojento que não tem como intenção criar-nos momentos de prazeroso susto, mas sim afogar-nos no seu arrepiante mundo de violência omnipresente e amoralidade generalizada, onde qualquer tipo de emoção ou sentimento positivo há muito deixaram de existir.

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O MELHOR: A fotografia de Zach Kuperstein.

O PIOR: Os sotaques do diálogo em português. Apenas Magalhães tem uma pronúncia convincente enquanto, em alguns casos, os restantes membros do elenco têm sotaques de diferentes origens e parecem ter aprendido as suas falas foneticamente. Isto não é preocupante para uma audiência americana geral, mas, em Portugal, é difícil não nos rirmos ou torcermos o nariz a tais incoerências linguísticas.



Título Original:
 The Eyes of My Mother
Realizador: Nicolas Pesce
Elenco:
Kika Magalhaes, Will Brill, Olivia Bond, Flora Diaz, Clara Wong, Diana Agostini

Cinema BOLD | Drama, Terror | 2016 | 76 min

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CA

 

One thought on “Os Olhos da Minha Mãe, em análise

  • Os Olhos da Minha Mãe: 5*

    “Os Olhos da Minha Mãe” é um poderoso filme de suspense e a presença do Fado no filme é extremamente importante.

    Cumprimentos, Frederico Daniel.

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