Paraíso, em análise

É estarrecedor quão urgentes e atuais algumas das questões levantadas por Paraíso de Andrey Konchalovskiy são na conjetura política atual.

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Em 1985, depois de mais de uma década de pesquisa e filmagens Claude Lanzmann mostrou ao mundo a sua magnum opus de mais de nove horas, Shoah. Este filme é, ainda hoje, considerado por muitos como o derradeiro documentário sobre o Holocausto apesar de, visual e estruturalmente, ser “somente” uma coleção de entrevistas pontuada pela leitura de documentos históricos sem qualquer tipo de inflexão dramática ou acompanhamento ilustrativo. As razões para a excelência e importância do trabalho de Lanzmann são material para outro artigo, ou mesmo para um livro, mas o que queríamos salientar aqui é que, no meio de dezenas de testemunhos de sobreviventes, algumas das entrevistas mais chocantes e inesquecíveis são aquelas que foram realizadas, em muitos casos sem o consentimento dos entrevistados, aos próprios perpetradores do Holocausto, tanto nazis como aqueles que permitiram e conviveram com o seu domínio. Sua desculpabilização, racionalização e apelo à ignorância pessoal são algo que ainda causa calafrios a muitos dos espetadores do filme de Lanzmann.

Para certas pessoas o mero ato de ouvir e dar a voz a tais criminosos será algo intolerável, sendo que é muito mais fácil chamarmos aos perpetradores do Holocausto monstros e assim removermos qualquer hipótese de entendimento ou identificação. Tal atitude é mais do que compreensível mas também é perigosa. Quando classificamos alguém como um monstro, estamos a despi-lo da sua humanidade e a removê-lo do mesmo plano de existência em que vivemos. Por outras palavras, dizer que os nazis foram, simplesmente, monstros, é negar a possibilidade de que os seus horrores se voltem a repetir. Afinal, olhamos em volta e não vemos monstros, vemos pessoas e, por essa lógica, só monstros são capazes de tais horrores. Os nossos vizinhos não têm em si a capacidade de odiar a tal nível, de serem seduzidos por uma ideologia tão venenosa, os nosso amigos nunca ficariam calados face a um regime assim, nós nunca cairíamos nos mesmos erros. Ouvimos diariamente notícias que nos mostram um mundo assolado por demagogias de ódio, mas dizemos, para nós mesmos, que não somos, nem nunca poderíamos ser, monstros. Dizemos que esse horror do passado nunca se irá repetir.

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Esta introdução é necessária para se falar do mais recente filme do cineasta russo Andrey Konchalovskiy porque Paraíso é uma obra que, tal como Shoah, nos convida a ouvir as motivações e justificações de um nazi. Isto é o resultado de uma estrutura simultaneamente tripartida e bifurcada em que observamos três indivíduos cuja história se entrelaça durante o Holocausto e, ao mesmo tempo, somos testemunhas de um interrogatório metafísico perante o qual os três protagonistas confessam e refletem sobre as suas. Um dos três protagonistas é Helmut, nascido no seio de uma família aristocrática alemã e um aristocrata aborrecido que olha para o estado da sua nação e apenas vê desgraça e decadência, até que a luz da causa de Adolf Hitler lhe dá esperança para um mundo melhor, para um paraíso germânico na Terra. Ele acaba por se tornar num oficial da SS e de ir trabalhar para um campo de concentração. No seu discurso pessoal, a ideia Nietzschiana do Übermensch é várias vezes manifesta, mas não em relação ao Führer. Helmut vê-se a si mesmo como o indivíduo definido por esse conceito, que está intrinsecamente ligada às noções de Nietzsche sobre a obsolescência do divino – uma relação particularmente importante num filme com um título e uma componente espiritual tão forte como este.

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Notoriamente, não existe uma única perspetiva judaica neste filme sobre o Holocausto, algo que poderá vir a enfurecer ainda mais quem já se mostre indignado com a presença do retrato empático de um nazi. Não querendo invalidar tais apreciações negativas, tal ausência é deliberada e está diretamente relacionada com o tema principal do filme – o privilégio. O privilégio da classe dominante que olha para qualquer tipo de questionamento do seu privilégio uma afronta à ordem do mundo. O privilégio de quem nunca se sentiu marginalizado. O privilégio da escolha. Paraíso não se trata de mais uma história do Holocausto focada nas suas vítimas, mas sim de um estudo sobre as ações daqueles que, por privilégio do seu nascimento num certo patamar da hierarquia socioeconómica e etnia, tiveram a oportunidade de escolher o seu próprio destino perante o advento do Holocausto. Não é por acaso que o filme tanto sublinha a condição aristocrática de dois dos seus protagonistas.

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Para além de Helmut, eles são Olga e Jules. Ela é uma condessa russa expatriada em França que é presa pelas forças policiais quando se descobre que estava a colaborar com a Resistência e a esconder dois meninos judeus no seu apartamento. Jules é o colaboracionista francês encarregue de interrogar a aristocrata que, desesperada, o tenta seduzir. O seu esquema resulta mas, no dia seguinte, antes de ela ser libertada, Jules é assassinado por agentes da resistência, resultando no envio de Olga para um campo de concentração. Aí, ela depara-se com Helmut, que em tempos a amou e que ainda nutre por si uma obsessiva atração. Talvez deliberadamente cego à perversa dinâmica de poder na sua relação, Helmut tenta instigar o romance entre si e sua prisioneira e, quer seja pelo desespero de um animal enjaulado ou pela loucura de uma prisioneira abusada, Olga vai consentindo aos seus avanços. Em troca, ele promete-lhe a liberdade.

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Mesmo nesta descrição sumária do enredo, torna-se bem óbvio quão desequilibrado o filme está em relação aos seus protagonistas. Paraíso é a história de Olga e Helmut, o indivíduo que vê o Mal e decide resistir-lhe e o indivíduo que promove o Mal e toma-o como o valor que lhe dita as ações. E depois temos a história suplementar de Jules, que representa uma perspetiva alternativa, a do egoísta que se finge ignorante, cumpre ordens e passivamente perpetra o Mal como parte do quotidiano banal. Todas estas perspetivas são necessárias ao argumento principal do filme acerca do privilégio da escolha, mas Andrey Konchalovskiy trai-se a si mesmo ao dar mais atenção às respostas mais extremas e ignorar a mais banal e, talvez por isso, mais complicada e perigosa.

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Esse desequilíbrio mostra-se venenoso para o discurso concetual do filme, mas não é mortal para a qualidade geral do projeto. Mais não seja, Paraíso é um pequeno triunfo formal, especialmente no que diz respeito à fotografia de Aleksandr Simonov, que mostra uma riqueza de cinzentos rara no cinema preto-e-branco atual e que se torna particularmente notória nas passagens mais metafisicas da obra. Nem tudo é perfeito, no entanto. O uso de danos na película é um artifício de envelhecimento muito distrativo que se evidencia mais como uma afetação desnecessária do que como uma parte orgânica da estética do filme. Também o uso de dobragem muito mal integrada na sonoplastia se afirma como um lapso na integridade técnica de Paraíso mas, tal como todas as fragilidades do filme, isso não invalida a riqueza concetual latente à premissa de onde todo o projeto germinou.

[Quem quiser evitar SPOILERS talvez deva evitar o próximo parágrafo!]

No final, revela-se que as entrevistas eram um interrogatório post-mortem, em que estava em jogo a entrada dos vários protagonistas no paraíso. Não o paraíso germânico edificado por Helmut, nem a utopia terrena onde o ódio não existe que Olga deseja, mas sim o paraíso divino. Apenas a mulher tem o direito de entrar, e essa decisão celestial está presa às escolhas de Olga. Chorosa, ela diz-nos como é difícil resistir, como fazer o que está certo é tortuoso e a dúvida é constante, mas, mesmo assim, ela sacrificou tudo, mesmo a sua vida, para salvar quem podia. Jules não mostra arrependimentos em relação aos crimes contra a humanidade que ele mesmo auxiliou e Helmut vai mais longe, negando qualquer crime, identificando-se como o Übermensch, e chegando mesmo a dizer que a falha no plano dos nazis era simplesmente que se tratava de uma ideia demasiado perfeita. Confrontados com o privilégio da escolha face ao Mal, cada um destes indivíduos tomou um caminho diferente e, confrontados com a autorreflexão, cada um mostrou novamente uma perspetiva distinta. Mesmo que Olga seja a alma que ascende ao paraíso, a partir da entrevista, Konchalovskiy concedeu a cada uma das suas personagens a oportunidade de apelarem o seu caso e deixou implícita uma poderosa interrogação ao espetador: Que escolha seria a tua? Tens a certeza?

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O MELHOR: A ênfase na escolha e no livre arbítrio como parte de um discurso espiritual é uma extrema raridade no cinema tanto de um ponto de vista ateu como religioso, pelo que há que valorizar tal escolha pela parte dos criadores de Paraíso.

O PIOR: O colossal desequilíbrio estrutural dentro da narrativa e do próprio discurso ideológico do filme que é criado pela negligência prestada à figura de Jules.



Título Original:
Ray
Realizador:  
Andrey Konchalovskiy
Elenco:
 Yuliya Vysotskaya, Christian Clauß,  Philippe Duquesne,  Vera Voronkova
Legendmain | Drama | 2016 | 131 min

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Paraíso

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