Veneza 73 (Dia 11) | A Fechar à Kusturica


A competição abriu com um musical e fecha com ‘On the Milky Road’, uma desbragada comédia bélica e romântica de Emir Kusturica, com muita música. O filipino Lav Dias apresentou The Woman Who Left, um belíssimo melodrama a preto e branco inspirado, num conto de Tolstoi, que dura quase quatro horas. É um filme tão bom e envolvente, que o tempo passa a correr.

The Woman Who Left

Depois de A Lullaby to the Sorrowfull Mystery, visto na última Berlinde — ultrapassava as oito horas de duração— realizador filipino Lav Dias, continua a desafiar a resistência dos espectadores agora com The Woman Who Left, um filme inteligente que dura quase quatro horas. Mas tal é a intensidade do drama e a beleza dos planos de Dias, que o tempo parece passar a correr. Uma das marcas do cinema de Lav Dias são efectivamente uns planos sequências magistrais — à boa maneira do cinema clássico norte-americano dos anos 40 e 50 —  para documentar a pobreza, a vida dura de Manila e os grandes conflitos sociais e políticos nas Filipinas, em geral.

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Desta vez Dias serviu-se da literatura europeia, inspirando-se no conto Deus Vê a Verdade, do escritor russo Lev Tolstoi, para combiná-lo com os ingredientes naturais do seu cinema e os ambientes de uma história verídica de uma espantosa mulher que passou cerca de trinta anos na cadeia, sem conseguir provar a sua inocência. A vida de Horacia Somorostro (Charo Santos-Concio), numa espantosa interpretação) parece de facto ter-se tornado numa verdadeira prisão perpétua, mesmo já fora das grades, já que o seu destino continua cheio de reviravoltas e surpresas. Além disso Horacia parece, continuar muito marcada por um passado cruel e pelo inexplicável, desaparecimento do seu único filho.

The Woman Who Left

The Woman Who Left, é na sua essência um melodrama clássico que assenta na força do destino, — como em Verdi ou no cinema de Douglas Sirk  e talvez por isso é um belo filme que ganha uma dimensão operática, quanto mais não seja pela sua duração e pela forma como cria uma grande expectativa em relação ao desfecho. The Woman Who Left procura ainda mostrar uma certa violência oculta e angústia: um clima de medo vivido em Manila, em 1997, a cidade asiática com maior número de pessoas desaparecidas, — e ainda hoje umas das 10 cidades mais arriscadas para viver — sem que haja qualquer tipo de explicação razoável para o sucedido. No entanto, o olhar de Diaz procura ser mais abrangente e global, relacionando The Woman Who Left, com dois acontecimentos que ocorreram nesse fatídico ano de 1997: a Princesa Diana de Gales morreu num violento acidente de carro em Paris; e a morte de Madre Teresa de Calcutá.

The Woman Who Left

The Woman Who Left é pois um filme também sobre a nossa frágil dimensão humana: uma das verdades fundamentais da existência, é que as coisas não estão totalmente nas nossas mãos. Pelo contrário é frequentemente, estarmos dominados pelo sentido aleatório da vida. Qualquer que seja o tema certo é que para o espectador, assistir a um filme de Lav Diaz será sempre uma forte experiência sensorial: sentimos uma certa resistência no início, custa um pouco a entrar, mas depois é prazer mergulhar nestes filmes quase sempre de uma na profundidade, sensibilidade, beleza e na grandiosidade das imagens e pormenores deste cineasta único.

On The Milky Road

O último dia da competição foi dominado por filmes de cineastas únicos, como Emir Kusturica, que fechou o concurso com um belo e maravilhoso conto de fadas moderno intitulado On The Milky Road, a partir de uma história da sua autoria publicada em livro e que tem o título italiano de Lungo La Via Lattea.  Algures numa Primavera em tempo de Guerra das Balcãs — um regresso ao universo de Underground, 1995 — todos os dias o leiteiro Kostas (interpretado pelo próprio Emir Kusturica), atravessa a frente de combate montado num burro, evitando miraculosamente as balas, trazendo este precioso alimento para os soldados.

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Bafejado pela sorte sua missão, e amado pela mulher mais bonita da terra, Kostas parece destinado a um futuro brilhante até que com a chegada de uma misteriosa e bela italiana (Monica Bellucci), dá-lhe a volta à cabeça. E assim começa uma apaixonante história de amor proibido — e em tempo de guerra —  que vai levar o par romântico a aventuras fantásticas e perigosas. Só que os dois parecem estar tão unidos pelo destino, que nada nem ninguém parece capaz de detê-los.

On The Milky Road

On The Milky Road é de facto um conto de fadas moderno, louco e desbragado, combinado com uma apologia à natureza e ambiente — às vezes tem planos que parecem saídos dos documentários da National Geographic — e que se desenvolveu a partir da diversidade de experiências e romances do realizador, conhecido aliás como um grande bon vivant. On The Milky Road é um filme que revela novamente a multiplicidade do seu talento, que vai da música à escrita. É esta combinação de várias artes que constroem um filme simples e emocionante, que procura contar no fundo, e de uma forma bastante divertida e apaixonada, a história de um homem e uma mulher que se amam e estão prontos a sacrificar-se pelo seu amor. O ritmo do filme é alucinante como é habitual em Kusturica e com muita música e com os géneros misturados: documentário sobre a natureza, filme de aventura, filme de guerra, comédia romântica ou musical, onde Kusturica e Bellucci tem uma química excepcional e apiaxonante. On The Milky Road foi um belo encerramento na ‘la la land’, desta Veneza 73.

JVM (em Veneza)

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