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1917, análise definitiva

1917” é um portento visual que reinventa o clássico “war movie”, convidando-nos a entrar de corpo e alma numa maratona destrutiva revestida de espiritualidade.

Pelo enigmatismo do título numérico, e pela subjetividade do poster belicista, “1917” diz-nos logo ao que vem com pujança e vigor. O que não nos diz é o porquê, e talvez, por esse motivo, seja pertinente recuperarmos os créditos finais do épico histórico de Sam Mendes (“Skyfall”), antes de irmos mais além. E é pela memória do seu avô, o luso-descendente Alfred Mendes, que o neto honra o compromisso assinado aos doze anos de contar histórias – uma que não poderia ser mais pessoal e íntima. “1917” refere-se à “Terceira Batalha de Ipres”, que conduziu o Reino Unido e os seus Aliados a uma das maiores carnificinas da Primeira Grande Guerra. Mas também foi esse massacre que produziu heróis nacionais como o pequeno e lingrinhas “Alfy”, que devido ao seu baixo centro de gravidade, conseguia esquivar-se com maior rapidez nas barbas do inimigo para transportar as ordens superiores aos comandantes dos batalhões no terreno. E foi a ouvir os feitos mais hercúleos do seu antepassado com sotaque caribenho e raízes madeirenses, que Sam Mendes invoca o seu espírito na missão valorosa de dois jovens cabos do exército britânico, incumbidos de impedir uma emboscada dos alemães, que levaria à morte de mil e seiscentos soldados.

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Mas antes de Mendes nos atirar para a sacola abafada dos dois estafetas para apalparmos todos os solavancos da viagem suicida, é na pausa da matança, naquele momento solene em que a brisa verdejante apazigua momentaneamente o inferno da alma entre dois choupos, que Blake (Dean-Charles Chapman) desinquieta Schofield (George McKay) para a sua bravata familiar. Instruídos a frio pelo robusto e incisivo general Erinmore, que só desmascara o Colin Firth que há em si pela pronúncia inconfundível, é aqui que começa o banquete audiovisual de Sam Mendes. À medida que os nossos meninos avançam pelos sinuosos canais de trincheiras abarrotadas, apenas à espera que um prato de chapéu se mostre no campo aberto para ser abatido, também nós, flexionamos ao de leve o pescoço para baixo e seguimos eretos o carril invisível de arames suspensos, que fazem escorregar a câmara pestilenta do oscarizado Roger Deakins, como as testemunhas “voyeristas” de uma jornada inexorável. Sempre alapados ao próximo movimento corporal na plenitude da sua mortalidade eminente, Deakins não permite que escapemos de forma alguma da experiência emocional, obrigando-nos a sentir o peso do chumbo aterrador da nossa pegada visual, naquele jardim farpado de carne apodrecida, como condição inegociável para alcançarmos a liberdade mental.

1917 critica
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Mas é esse compromisso irredutível de Deakins e Mendes em sorver a aspereza silenciosa da realidade mundana, reconvertendo-a num diálogo audível de poesia imagética, que acaba por validar o que seria apenas um cenário de guerra com dois intervenientes tão banais na sua essência. Nessa medida, o co-argumento de Sam Mendes e Krysty Wilson-Cairns não poderia ser mais simplório e corriqueiro na sua abordagem, e pese embora o enquadramento com o espírito etário e cultural da época, a vulgaridade serviçal do conteúdo, até acaba por revelar-se proficiente pela espontaneidade e genuinidade que acaba por conferir aos dois compinchas de armas. Para tal, o rosto pueril de Chapman ajuda a vender essa autenticidade mais frívola, que encontra a sua correlação perfeita no semblante graúdo e assertivo de McKay, atestando uma estóica afeição deleitosamente vocacionada para extrair do mais ínfimo pormenor, toda a seiva espiritual da natureza humana. Porque a louca correria de ambos para evitar mais um massacre nas suas viçosas fileiras bélicas, ainda que nos consiga açular com a mesma dose de adrenalina daqueles viciantes videojogos “endless runner” dos smartphones, jamais poderia ser privado do seu momento introspetivo, tão vital para transpirarmos com eles todos aqueles horrores presos na retina.

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E Deakins não podia conceder um primeiro minuto mais sublime de contemplação idílica num delicado afogo libertador da alma, mergulhando Blake e Schofield numa manta de cerejeiras bravas, que fugazmente desabrocham na aveludada aragem como um toque de Midas. Um recorrente cliché acolhedor da finitude pacifica do sofrimento da vida, ou um mantra niilista da existência humana…A verdade é que tanto Mendes como Wilson-Cairns retratam a visão mais romântica e machista da guerra, como se os protagonistas bebessem um “Rambo” ao pequeno almoço para obterem a coragem de não vacilar no campo de batalha, porque não há tempo para sentimentalismos nestas horas, já dizia o grande Rei Leónidas. A aniquilação do homem é tida aqui como um troféu valorativo da sua coragem e valentia, longe dos berros histéricos e das resmas de sangue a jorrar pelos membros mutilados, que só se vislumbram desfocadamente por breves instantes para não serem exauridamente relembrados. Nada contra o “downgrade” do “gore”, que segue a mesma rota benevolente de “Dunkirk” para nos escudar da violência gratuita em prol de um propósito mais simbólico e altruísta.

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Deakins volta a carga com a sua “câmara a vacilar constantemente entre o olhar subjetivo e objetivo, íntimo e épico”, fazendo-nos apanhar todos cacos do chão e lamber todas feridas do corpo deixadas por Schofield na sua passagem de rompante pelas linhas inimigas, habilmente tricotadas na ilusão de uma imagem contínua a transbordar para um horizonte infinito. Na realidade, são duas extraordinariamente longas tesouradas de fita cinematográfica, que se encontram no preciso instante em que Schofield é agraciado pela carabina em riste de um “boche” – uma cabeça de “repolho” alemã, que dispara e o ecrã escurece imediatamente para uma das pausas de cinema mais anticlimáticas de sempre. Um pequeno soluço no ambicioso truque mágico de Sam Mendes, cuja logística de cada cenário requereu seis meses só para ser planeada, com um “exército de colaboradores a combaterem aves e nuvens pelo caminho”. Numa das cenas de maior espetacularidade, Schofield começa uma “cavalgada” sincronizada na penumbra de uma aldeia francesa em ruínas, que acordam e adormecem com o ballet de explosões luminosas aprisionadas às suas movediças sombras mortíferas. Aqui, a equipa de efeitos visuais teve de reconstituir o plateau da localidade em miniatura, sobrevoada por uma engenhoca de luz que captasse a refração da luminosidade pelas diversas superfícies.

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Mas por todos estes coelhos tirados da cartola por Mendes, amplamente reconhecidos pela Academia de Hollywood, não podemos deixar igualmente de apontar, que todo o virtuosismo técnico acaba por armadilhar os factos ali narrados, confinando os intervenientes a uma baliza de acontecimentos lineares na persecução deste seu devaneio singular. E para rematar toda a excentricidade do realizador, o renomeado compositor musical de “Skyfall” (Thomas Newman) é novamente chamado pelo amigo a “maltratar” a sua obra de arte, exprimindo as tonalidades infernais do seu quadro faustoso, através de violoncelos plangentes e batuques tumultuosos numa cacofonia permanente.

1917 critica
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“1917” é um assombro de filme, quanto a isso não restam quaisquer dúvidas. A película de Mendes esmera-se por conseguir extrair do flagelo dos conflitos armados, o lado mais místico e transcendental do homem na face da sua obliteração, colocando-nos na frente de combate como poucos o conseguiram fazer. Do início ao fim, a nossa mente é estimulada e massacrada sensorialmente, até precisarmos de recorrer a mais um balde de pipocas para combatermos a fome emocional e aguentarmos a pressão do suspense ininterrupto. É por isso que, enquanto formato de entretenimento no seu mais puro estado de graça, “1917” irá para o panteão dos notáveis, mesmo que a sua mensagem de honra e glória tenha sido escassa para limpar as distinções máximas da indústria do cinema.

* Disponível em DVD e Blu-ray a 13 de Maio *

1917
1917

Movie title: 1917

Movie description: Sam Mendes, o realizador vencedor de um Óscar® de "007: Skyfall", "007 Spectre", "Revolutionary Road" e "Beleza Americana", traz a sua visão singular a este épico sobre a Primeira Guerra Mundial, "1917". No auge da Primeira Guerra Mundial, dois jovens soldados britânicos, Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman), recebem uma missão aparentemente impossível. Numa corrida contra o tempo, têm de atravessar território inimigo e entregar uma mensagem que impedirá um ataque letal contra centenas de soldados, entre eles o irmão de Blake.

Date published: 29 de February de 2020

Director(s): Sam Mendes

Actor(s): Dean-Charles Chapman, George MacKay, Daniel Mays

Genre: Drama, Guerra

  • Miguel Simão - 90
  • José Vieira Mendes - 95
  • Rui Ribeiro - 90
  • Catarina d'Oliveira - 80
  • Cláudio Alves - 65
  • Daniel Rodrigues - 65
  • Maggie Silva - 80
  • Virgílio Jesus - 40
76

CONCLUSÃO

“1917” é, sem desprimor para “Skyfall”, o melhor trabalho cinematográfico de Sam Mendes até à data. A sua obra é um prodígio técnico, há que não ter medo das palavras; atinge-nos com uma sensibilidade artística e uma ferocidade visual invulgares para uma longa metragem deste género temático. Mas, como todos os grandes feitos, existe o reverso da medalha, e no caso específico de “1917”, a sua maior força é igualmente a sua maior fraqueza. Contudo, não é por isso que não merece ser visionado, antes pelo contrário, a experiência imersiva de entrarmos literalmente naquela guerra, desta vez vale mesmo o dinheiro do bilhete.

Pros

  • Efeitos visuais inovadores
  • A cinematografia artística de Deakins
  • Interpretações impactantes

Cons

  • A famosa filmagem do único plano sequência é imperfeita
  • Problemas pontuais na cadência da ação
  • O argumento é demasiado superficial
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