1º Cine Atlântico (Dia 3): Memórias da PIDE

O documentário, ‘O Medo à Espreita, de Marta Pessoa, um belíssimo filme sobre as memórias secretas da PIDE, é o filme em destaque — com a presença da realizadora — para além dos premiados ‘Cavalo Dinheiro’, de Pedro Costa e ‘Montanha’, de João Salaviza, filmes que preenchem a programação do segundo dia desta mostra. 

Cine Atlântico

Depois de Lisboa Domiciliária, (2009), a realizadora Marta Pessoa filmou este O Medo à Espreita, un filme sobre as memórias secretas do fascismo: são testemunhos de cidadãos que viveram até à queda do Estado Novo, uma vida de perseguição pessoal e política. Uma das piores faces da ditadura antes do 25 de Abril era a denúncia secreta, e ao logo de 40 anos o sistema de repressão política foi alimentado e movia-se por passos secretos, informações ocultas, e perseguições, no dia-a-dia, a pessoas suspeitas de viverem contra o regime.

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O Medo à Espreita, exibido hoje às 21h30, é o retrato dessas pessoas que viveram diariamente debaixo da sombra dos informadores da PIDE/DGS e da tortura da polícia secreta. Em Portugal, ao longo de quase meio século, a PIDE/DGS foi de facto uma máquina atemorizadora que alimentou o poder do Estado Novo de Salazar/Caetano. E a par dos quadros de inspectores e agentes efectivos da organização, a polícia política recorria aos serviços dos ‘informadores’ avençados. Eram cidadãos comuns tornados delatores, que se diluía nas empresas, escolas, universidades, bairros e instituições com o intuito de vigiar para denunciar, que era contra o regime.

‘…é um retrato das pessoas que viveram diariamente debaixo da sombra dos informadores da PIDE/DGS e da tortura da polícia secreta.’

Os informadores da PIDE, ‘os bufos’, tornaram-se figuras quase omnipresentes na vida dos portugueses. Entre denúncias e denunciados, O Medo à Espreita constrói precisamente essa memória do medo e de um país onde viver era viver vigiado, sobre o ambiente de repressão do Estado Novo. O Medo à Espreita não é mais um filme sobre tortura, prisão ou sobre a PIDE. É antes uma reflexão e um olhar sobre o passado a partir da atualidade, pois nas nossas sociedades democráticas parecem estar a surgir aos poucos e sem se dar por isso uma mesma sensação de medo e certos sinais sub-reptícios de incentivo à denúncia.

O Medo à Espreita

E assim O Medo à Espreita é igualmente um extraordinário retrato de um país e da democracia, onde o instrumento da denúncia cresceu, muito para além dos círculos políticos, para se instalar sorrateiramente no nosso quotidiano por exemplo no mundo do trabalho e empresas.

Montanha

SUBIR À ‘MONTANHA’

Elogiado pela crítica, premiado em vários festivais internacionais por esse mundo fora, Montanha, a primeira longa metragem do jovem realizador português João Salaviza, uma poderosa história da adolescência, que conta a história de um miúdo de bairro e das suas ‘dores’ de crescimento, estreia agora aqui ao Recreio dos Artistas, da Ilha Terceira às 18h30.

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Depois dos importantes prémios em Cannes e Berlim pelas suas curtas Rafa e Arena,  o surpreendente João Salaviza lança agora numa versão ‘long-play’ a sua primeira longa metragem Montanha. 

‘Montanha, é uma poderosa história da adolescência, que conta a história de um miúdo de bairro e das suas ‘dores’ de crescimento…’

Esta é mais uma história da adolescência que conta a história de David (Mourato), um puto de 14 anos, desiludido e perdido numa Lisboa geométrica e vazia, entre o bairro dos Olivais, a linha do comboio, a escola e as instituições, a morte e a desilusão de um primeiro amor.

Cavalo Dinheiro

‘CAVALO DINHEIRO’: A VOZ DOS PERDEDORES

Por sua vez Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa o filme que abre hoje a programação às 14h30, é mais um regresso ao naturalismo documentalista de No Quarto de Vanda, e novamente com Ventura, um dos último imigrantes cabo-verdianos e o maior dos sobreviventes do extinto Bairro da Fontainhas, numa espécie de continuação da alma errante de Juventude em Marcha.

Vê Trailer de Cavalo Dinheiro 

Cavalo Dinheiro é mais um retorno na carreira do notável realizador português aos ‘fantasmas’ das Fontainhas. Isto não significa que Pedro Costa tenha feito uma mera reciclagem de imagens ou tenha perdido a sua capacidade criativa. Pelo contrário reconstruiu um por um, alguns dos planos mais bonitos, fascinantes e inebriantes do cinema português da actualidade. Planos esses na sua maioria são fixos, embora surjam alguns escassos e virtuosos movimentos de câmera.

‘Pedro Costra reconstruiu um por um, alguns dos planos mais bonitos, fascinantes e inebriantes do cinema português da actualidade.’

Entre o 25 de Abril de 1974 e a actualidade Cavalo Dinheiro é um vai e vem no tempo e na memória. Sem demasiada justificação nem preocupação por encontrar uma coerência narrativa e temporal, o filme vai abordando elementos históricos e sobretudo a dura existência dos nascidos em Cabo Verde, que imigraram para para Portugal depois da Revolução.

‘No centro da cena está a figura errante, decadente, (e já bastante doente) de Ventura, que passa uma boa parte do filme dentro de um sórdido e semi-vazio hospital de Lisboa.’

No centro da cena está a figura errante, decadente, (e já bastante doente) de Ventura, que passa uma boa parte do filme dentro de um sórdido e semi-vazio hospital de Lisboa. Com as suas mãos enrugadas e calejadas, e o seu olhar ainda intenso, Ventura vai enfrentando os seus fantasmas pessoais e a sua decadência física e mental. Ventura acaba por se perder num bosque, enquanto os seus amigos do bairro o procuram incessantemente.

Cavalo Dinheiro

Pedro Costa construí também um filme-homenagem a Ventura, em tom de ode final e elegía definitiva ao seu personagem e último sobrevivente das memórias das Fontainhas. Por isso, Cavalo Dinheiro é um filme melancólico e poético, — com poucos diálogos, mais sussurrados que ditos — que assenta num poderoso argumento sobre a velhice e solidão e sobretudo no poder evocativo das suas imagens. A banda-sonora é soberba principalmente composta de canções da banda cabo-verdiana Os Tubarões, que na verdade são mais os lamentos dos que continuam a viver num mundo à parte em Portugal, são a voz dos marginais do país apesar de tudo — para o bem e para o mal — ainda mais marginal da Europa. Cavalo Dinheiro é ainda uma singela homenagem e uma merecida reivindicação artística que dá voz aos perdedores do sistema e da sociedade portuguesa.

JVM

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