70º Festival de Cannes (Dia 1): Os Fantasmas do Virtual

Para comemorar a sua 70 edição, o festival dos festivais de cinema vai abrir oficialmente daqui a pouco com o filme francês ‘Les Fantômes d’Ismael’, um ensaio de géneros e uma reflexão sobre o real e virtual, de Arnaud Desplechin, apresentado fora da competição.

70º Festival de Cannes
Marion Cotillard e Charlote Gainsbourg, protagonistas do filme de abertura.

A ironia do filme de abertura Les Fantômes d’Ismael, de Arnaud Desplechin (Um Conto de Natal), sobre um realizador à procura de si mesmo e do seu lugar na arte cinematográfica, é um filme que assenta que nem uma luva na ideia destas comemorações da 70 edição do Festival de Cannes. Nela, para além dos formatos mais convencionais de cinema da homenagens (Abbas Kiarostami e André Téchiné) há lugar para muito da vanguarda e para a reflexão sobre uma profunda mudança nos conteúdos audiovisuais: formatos mistos, obras experimentais, sessões especiais de séries de televisão; sobretudo esses tais novos modos de ver e de consumir ‘Cinema’, do qual é paradigmático a inclusão na competição oficial dos dois filmes da Netflix (Okja do coreano Bong Joon-ho e Meyerowitz Stories, de norte-americano Noah Baumbach). Filmes  esses que qualquer que seja o seu percurso neste concurso, não irão estrear em sala, mas directamente na plataforma Netflix.

Para além de alguns, mas não muitos, dos cineastas habituados a estas andanças e até premiados em edições anteriores do Festival de Cannes, como Michael Haneke (Happy End), Jacques Doillon (Rodin), Todd Haynes (Wonderstruck), Michel Hazanavicius (Le Redoutable) ou mesmo François Ozon (L’Amant Double); regressam nesta competição uma geração de cineasta-autores à procura da sua afirmação global que este festival proporciona: Andrey Zvyagintsev (Loveless), Sergei Lonitza (A Gentle Creature), Lynne Ramsay (You Were Never Really Here), Fatih Akim (In The Fade), Yorgos Lanthimos (Mise à Mort Du Cerf Sacré) e ‘indies’ norte-americanos a começar por Sofia Coppola (Les Proies), Noah Baumbach (Meyerowitz Stories) e os jovens Bennie e Josh Safdie (Good Time’. Uma competição que apesar de tudo vai dar muito trabalho ao júri presidido por Pedro Almodóvar.

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Iñarritu, apresenta uma instalação em realidade virtual.

No entanto, antes do filme de abertura importa referir algumas curiosidades de 70º Festival de Cannes: são quarenta e nove filmes na Selecção Oficial, vindos de 29 países,  cerca de 12 são dirigidos por mulheres, 9 são primeiras-obras de realizadores, 4 filmes interpretados por Nicole Kidman — é a estrela de serviço desta edição além das divas Monica Bellucci e Claudia Cardinale, receptivamente a ‘madrinha’ e o rosto do cartaz.

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Nicole Kidman em ‘Top of the Lake’.

Novidade é também a apresentação de 2 séries de televisão (dois episódios da 3ª temporada de Twin Peaks, de David Lynch e a 2ª Temporada de Top of the Lake-China Girl, de Jane Campion, uma das com Nicole Kidman); a primeira inclusão a concurso de dois filmes da Netflix; os primeiros ensaios da revolução ao nível da realidade virtual ( a instalação Carne y Arena, da premiada dupla mexicana Alejandro González Iñárritu  e Emmanuel Lubezki); e por último um certo recuo de filmes originários das grandes produtoras de Hollywood.

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Todo o elenco de ‘Les Fantômes d’Ismael’.

Les Fantômes d’Ismael, o novo filme do realizador francês Arnaud Desplechin, apresentado fora da competição é um drama passional fragmentado em várias histórias e intrigas, que assenta sobretudo, na figura de um realizador e argumentista à procura dos seus personagens — numa ligação direta a Sete Personagens à Procura de Um Autor, do dramaturgo italiano Luigi Pirandello — e em crise criativa como em 8 1/2, de Federico Fellini.

Na verdade, os fragmentos ou várias histórias do cinema dentro do cinema, descritas uma montagem muito rápida — que torna algo confuso o drama (ou dramas???) — é um emaranhado de referências literárias e cinéfilas, que vão de James Joyce (Ulisses) a Alfred Hitchcock (A Mulher Que Morreu Duas Vezes). É num intrincado registo entre a comédia e o filme de espionagem ou uma espécie de desobstrução ou decomposição de géneros que funciona Les Fantômes d’Ismael.

O filme conta a história de um cineasta (Mathieu Amalric), quase um alter-ego de Arnaud Desplechin, que quer fazer um filme sobre o seu irmão Ivan Dédalus (Louis Garrel, que também vai fazer de Jean-Luc Godard, no filme de Hazanavicius), que fez carreira como diplomata, mas que se vê envolvido no mundo dos espiões. Ismael vive com Sylvia (Charlotte Gainsbourg), mas vive com as lembranças de Carlotta (Marion Cotillard), a sua primeira mulher, desaparecida há mais de uma década sem deixar rasto e que deixando além do marido, esqueceu o pai (mentor artístico do procedente marido), o cineasta Blomm (Lászlo Szabó). Supostamente morta, Carlota regressa para complicar ainda mais as coisas e os fantasmas de Ismael, que procura algumas das suas respostas pessoais e artísticas, num quadro Jackson Pollock.

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Mathieu Amalric é um realizador em crise existencial e criativa.

Les Fantômes d’Ismael, de Arnaud Desplechin, não é uma grande obra para uma abertura em grande que se desejava. Mas cumpre a sua função de filme comemorativo para o momento de reflexão e de mudança nas escolhas e selecção oficial do Festival de Cannes. Acima de tudo é um ensaio marcado oportunamente com uma rede de referências da arte, literatura, cinema e também da vida,  que caminham  para um mundo onde a realidade virtual parece quer sobrepor-se ao real. No fundo creio, é a imagem deste Cannes 70.

JVM

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