Venice Sala Web | Mukti Bhawan, em análise
Em Mukti Bhawan, um ancião indiano decide que quer morrer na cidade sagrada de Varanasi e leva consigo a companhia do filho naquela que será a sua última viagem. Tal como todos os filmes presentes no Venice Sala Web, esta obra foi exibida no Festival Internacional de Veneza e está, de momento, disponível no Festival Scope.
Afirmar que o caminho para o universal passa pela especificidade é um ditame que se tem vindo a tornar bastante popular na crítica cinematográfica. A sua popularidade não lhe retira verdade, no entanto, e Mukti Bhawan, a primeira longa-metragem do jovem realizador Shubhashish Bhutiani, é um bom exemplo disso. O que temos aqui é um filme indiano cuja narrativa, tanto a nível macro como micro, está assente no entendimento de uma realidade cultural muito particular. Mas, como o cliché dita, ao se emaranhar em minuciosas especificidades da vida e mentalidade das suas personagens, Bhutiani criou um dos mais universais filmes a serem exibidos pela Venice Sala Web, onde o tema da mortalidade humana se sobrepõe e transcende quaisquer limites culturais. Na verdade, o seu impacto alimenta-se bastante do modo detalhado com que o cineasta estabelece todo o ambiente familiar e doméstico.
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Antes de avançarmos para mais explorações narrativas, convém estabelecermos algum contexto. Mukti Bhawan, segundo a tradução anglófona, é um hotel de salvação, que é basicamente um estabelecimento na cidade santa de Varanasi onde pessoas que julgam ir morrer vão passar os seus últimos dias e lá esperam encontrar salvação aquando do seu falecimento. A ideia para o filme nasceu da descoberta que o cineasta fez destes hotéis, mas o seu projeto não é um documentário mas sim um modesto drama doméstico sobre Daya e seu filho Rajiv. No começo do filme, somos logo informados que Daya tem tido um sonho recorrente todas as noites e que, por isso, acredita que chegou o seu tempo de partir. Ele quer morrer em Varanasi e exige que o seu filho, com quem ele vive, o acompanhe. Rajiv vai assim com o pai até à cidade santa, onde pressões profissionais, deveres familiares e um historial de ressentimentos antigos vão pondo a nu as forças e fragilidades da relação dos dois homens.
Por muito que a câmara de Bhutiani se mostre fascinada com o cenário de Varanasi e com a peculiar comunidade que aí se forma devido à preocupação comum com a morte e salvação, Mukti Bhawan é, acima de tudo, uma miniatura doméstica sobre laços familiares e é precisamente no trabalho de ator, personagem e definição das dinâmicas humanas que o cineasta demonstra mais segurança e subtileza. Veja-se, por exemplo, como a figura de Sunita, a filha de Rajiv, é sumariamente definida em momentos fugazes, de um modo tão económico e eficiente que, quando ocorrem cenas mais centradas na sua pessoa, já sabemos tudo o que precisamos sobre ela sem nunca termos sofrido nenhuma instância de explicações diretas ou desnecessária exposição. Também toda a relação entre Rajiv e o seu pai é construída como um puzzle, com pequenas informações e insinuações a serem dadas à audiência, que vai assim delineando ela mesma as vidas que estes dois homens passaram em conjunto e sua influência um no outro.
Este foco na família é fulcral, pois, mais do que um estudo sobre o modo como os humanos lidam com a sua própria mortalidade, Mukti Bhawan dedica-se a examinar as diferentes maneiras como as pessoas são confrontadas com a mortalidade dos seus entes queridos. Daya nunca angustia em relação ao seu fim, tendo-o aceite antes do início do filme, mas a sua família, por muito antagonista que possa por vezes ser a sua relação, é quem vemos passar por um processo de aceitação do mesmo. O uso de composições repetidas no início e final do filme enfatizam bastante este dilema, com as repetições tardias a realçarem o espaço deixado por Daya como um buraco negro que atrai o olho para o seu vazio. Temos assim pinturas fílmicas em que não choramos o facto de alguém ter morrido, mas sim o vácuo que a sua partida deixa nas vidas de quem o rodeava. Não é por acaso que o único instante em que observamos Daya a olhar para a morte com dor nos seus olhos acontece aquando da morte de Vlima, uma amiga que ele tinha feito no hotel.
As repetições composicionais acima referidas são evidenciadas no filme devido à sua severa geometria, onde as linhas arquitetónicas dos espaços interiores funcionam como molduras para a ação humana. Esta gramática visual tem a sua beleza e, como se verifica no anterior exemplo, a sua eficácia, mas a solenidade que transmite acaba por se tornar um pouco sufocante e até aborrecida à medida que o filme vai avançando. Ainda falando da parte mais técnica e formal, há que salientar como a fotografia realista de David Huwiler e Michael McSweeney faz um belo uso da cor, especialmente em cenas noturnas, e como a sonoplastia é de um comedido génio, sempre sublinhando o vibrar do telemóvel de Rajiv como um rasgo de ruído inorgânico que apunhala os ouvidos da audiência e corrói a atmosfera pacífica.
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Em conclusão, Mukti Bhawan é um esforço modesto e elegantemente executado. Pelo seu final, é difícil conter as lágrimas e nunca sentimos que o cineasta nos está a manipular de modo forçado, o que não implica que não existam algumas fragilidades. Já falámos da severidade das composições, mas também é de salientar como a história avança a um ritmo letárgico que é capaz de testar a paciência de muitos espetadores, assim como as repetições narrativas e uma cena de sonho que nem sempre são as melhores escolha e inflacionam a duração de um filme que, com 103 minutos, parece ter, pelo menos, uns 20 a mais.
O MELHOR: A sua delicadeza no retrato da perda e o modo como nunca parece desrespeitar a dignidade e o orgulho das suas complicadas personagens, mesmo em momentos mais dolorosos.
O PIOR: A já referida geometria das composições e a consequente falta de dinamismo estético.
Título Original: Mukti Bhawan
Realizador: Shubhashish Bhutiani
Elenco: Adil Hussain, Lalit Behl, Palomi Ghosh, Navnindra Behl, Geetanjali Kulkarni
Festival Scope | Drama, Comédia | 2016 | 103 min
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