Bucha & Estica © PRIS Audiovisuais

Bucha & Estica, em análise

John C. Reilly e Steve Coogan dão vida ao icónico duo “Bucha & Estica” num filme que serve de jubilante celebração desses comediantes de outros tempos e de melancólica elegia à sua vida sofrida por entre as engrenagens da máquina da fama e do sucesso.

Amar cinema é amar Stan Laurel e Oliver Hardy, o par de comediantes que começou carreira nos palcos americanos do início do século XX e acabou por fazer sucesso no cinema mudo e sonoro sob a alcunha de Bucha e Estica. Seus filmes são delícias de sublime precisão performativa, onde o engenho dos palcos de Vaudeville é adaptado às nuances do cinema, seu enquadramento e possibilidades rítmicas. Com uma coreografia simples, um par de reações exageradas, uma cantoria chamativa e uma fala engraçada, eles conseguiam conceber milagres de entretenimento tão mais esplendoroso pela sua modéstia.

É precisamente esta capacidade para fabricar milagres de comédia e cinema escapista que está em evidência na primeira sequência de “Bucha & Estica”, um filme biográfico sobre a parelha que tanto serve de carta de amor aos seus talentos como de chorosa homenagem à resiliência que os sustentou durante os períodos mais negros das suas vidas profissionais. Nesta abertura, passada em 1937, no auge do sucesso, o realizador John S. Baird leva o espectador num passeio pelos estúdios, desde o camarim até ao plateau, num só plano sequência. Em termos formais, este é o gesto mais vistoso de todo filme, mas representa uma escolha sagaz, dando-nos a conhecer o ambiente destas lendas do cinema, o artificio por detrás do seu trabalho e a dinâmica complicada, tanto a nível profissional como emocional, que partilham.

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Dois atores em estado de graça.

Tudo isso nos é apresentado num abrir e fechar de olhos, com tal elegância que não nos apercebemos da magnitude do feito, estando distraídos pela reprodução minuciosa de umas mais célebres cenas no cânone cinematográfico de Bucha e Estica. Essa economia narrativa paga os seus dividendos quando, passado pouco tempo, o filme revela que esta excursão pelos anos de glória da parelha de estrelas de cinema não passou de um prólogo. A história principal de “Bucha & Estica” passa-se muitos anos depois, já nos anos 50, quando Stan e Ollie se aventuraram numa digressão pelos palcos ingleses na esperança de conquistar a confiança de um produtor de cinema disposto a apostar nos comediantes envelhecidos.

Há um contraste diabólico e chocante entre a energia da abertura, que vibra com a sua saturação de detalhes textuais e visuais, com a amorfia pacata desta nova fase na vida e narrativa dos protagonistas. O que outrora era uma existência marcada pelo trabalho constante, agora é um vazio de oportunidades e sonhos tão longínquos que é impossível a narrativa destas vidas alguma vez ganhar a forma de um drama sustentável com uma conclusão à vista. Por um lado, isto é uma fragilidade que limita até onde “Bucha e Estica” pode chegar enquanto uma proposta dramática. Por outro, tais desenvolvimentos transmitem a ideia de um filme que se desenrola e edifica à imagem e ao ritmo dos seus protagonistas.

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Se a câmara os fosse acompanhar em floreados travellings pelo espaço, seu passo teria de ser inexoravelmente mais lento que outrora, sendo que os corpos dos dois homens são um claro fardo para quem tem de viver com eles. Ollie, em particular, mostra bem os sinais de esforço que vêm com o tipo de envergadura física que lhe deu sua silhueta característica. Stan, por outro lado, é como uma mola entesada e rija, cheio de ressentimentos que está sempre a engolir e preocupações que lhe pesam sobre a postura e contraem a expressão. Seus corpos, gestos e expressões ditam o modo como a câmara e a audiência os encara e é só quando os dois veteranos da comédia entram em modo de performance, ora no teatro ou no palco do dia-a-dia banal, que suas figuras se arrebitam e o filme é insuflado por uma vitalidade revigorante.

Observar estas pessoas complicadas e talentosas é o intuito principal deste exercício cinematográfico e enquanto observação humanista, temos de admitir que é um sucesso meio encantador. Nada disto funcionaria, é evidente, se no centro de todo o projeto não estivessem dois notáveis atores no píncaro das suas capacidades interpretativas. Apesar do uso de maquilhagem bem convincente, John C. Reilly e Steve Coogan não se parecem lá muito com Bucha e Estica, muito menos com as suas versões mais envelhecidas e descaracterizadas. Contudo, longe de oferecerem uma mimese espelhada destes artistas do passado, o que a dupla de atores modernos faz é encontrar a essência do gesto, da técnica e da vivência de Ollie e Stan.

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Shirley Henderson e Nina Arianda trazem um toque de acidez cómica ao filme.

Por outras palavras, Reilly e Coogan imitam os números cómicos e musicais da dupla icónica com uma atenção quase arqueológica aos detalhes. Dito isso, enquanto espectadores, nunca encaramos seu trabalho como um simples ato de imitação. As ligações entre a performance reproduzida a partir de referências históricas e o comportamento casual de dois compinchas cuja amizade nunca esteve em tanto risco, são impercetíveis e orgânicas, nunca chamando atenção ao seu engenho. Num mundo em que atores se fartam de ganhar Óscares por imitações de meia tigela que se ficam pela sugestão superficial de tiques e registos vocais memoráveis, a subtileza que estes dois aqui evidenciam é de espantar. Enquanto Stan, Coogan é quem mais muda entre o palco e a vida privada, mas suas teias de mentiras e queixas suprimidas fazem de qualquer interação casual uma curadoria de evasão e silêncios pesados. Reilly, pelo contrário, aposta muito no físico da personagem, mas é igualmente soberbo a transmitir a ideia de um veterano dos palcos com uma necessidade quase patológica por entreter todos os que o rodeiam.

Bastava “Bucha & Estica” conter estas prestações para ser um filme de referência no género da cinebiografia, mas há muitas outras maravilhas em cena, mesmo em termos de elenco. A relação entre os comediantes e suas esposas é uma tapeçaria complicada de histórias partilhadas que Shirley Henderson e Nina Arianda sugerem com precisão e um humor acídico que serve de agradável complemento ao tipo de comédia mais física e primordial dos homens. O texto, por seu lado, torna a amorfia e inação numa mais-valia, enquanto a reprodução da Grã-Bretanha do pós-guerra concede ao filme um certo toque de requinte cenográfico. Em suma, “Bucha & Estica” é um filme modesto, divertido e triste em igual medida, que nunca almeja ser uma obra-prima, mas, pelo caminho, lá consegue assumir-se como um duplo retrato psicológico apoiado no eterno arquétipo do palhaço que faz todo o mundo rir enquanto chora por detrás de um sorriso pintado.

Bucha & Estica, em análise
Bucha e Estica

Movie title: Stan & Ollie

Date published: 11 de March de 2019

Director(s): Jon S. Baird

Actor(s): Steve Coogan, John C. Reilly, Nina Arianda, Shirley Henderson, Danny Huston, Rufus Jones, Richard Cant, Stephanie Hyam, Susy Kane

Genre: Biografia, Comédia, Drama, 2018, 98 min

  • Cláudio Alves - 80
  • Inês Serra - 75
78

CONCLUSÃO:

“Bucha & Estica” é um filme decidido a deleitar fãs da dupla de comediantes do cinema clássico do título e, se possível, criar mais uns quantos desses fãs também. Certamente as reproduções de números e rotinas paródicas das estrelas titulares são as partes mais prazerosas de um filme que tende a enveredar por tonalidades mais sérias e melancólicas quando está fora do palco. Um elenco estupendo eleva um argumento meio banal até patamares mais elevados de mérito artístico.

O MELHOR: O elenco. Num mundo justo, teríamos visto Steve Coogan, John C. Reilly, Shirley Henderson e Nina Arianda marcar forte presença na mais recente Awards Season.

O PIOR: A narrativa do filme está pejada de inconsistências históricas e invenções dos argumentistas que, em retrospetiva, não afetam muito o poder da obra enquanto estudo de personagem, mas lhe tiram grande valor enquanto drama histórico.

CA

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