INDIELISBOA Em Chamas critica

16º IndieLisboa | Em Chamas, em análise

Apesar de não ter conquistado um único prémio do Júri, “Em Chamas” foi o filme mais criticamente aclamado do Festival de Cannes do ano passado. Agora, este misterioso drama coreano chega a Portugal, com antestreia no IndieLisboa, onde integra a Secção Silvestre.

O cinema coreano tem vindo a ser um dos cinemas nacionais que mais se desenvolveu no século XXI, chegando a níveis de reconhecimento e importância internacional nunca antes atingidos. Segundo muitos, o fenómeno teve início em 2002, quando o realizador Lee Chang-dong levou ao Festival de Veneza uma peculiar história de amor e abuso entre um homem antissocial e uma mulher com paralisia cerebral. “Oasis” chocou e deleitou críticos e audiências em igual medida, abrindo caminho a um maior interesse mundial sobre a produção cinematográfica coreana. Desde então, autores como Kim Ki-duk, Park Chan-wook, Bong Joon-ho, Na Hong-jin e Hong Sang-soo, entre muitos outros, têm-se tornado em nomes bem conhecidos por muitos cinéfilos por todo o mundo fora.

Não obstante a importância histórica da sua carreira ou a aclamação crítica que todos os seus filmes recebem, Chang-dong está longe de ser um dos cineastas mais prolíficos da Coreia do Sul. Entre “Em Chamas” e o filme que veio antes, “Poesia”, passaram oito anos. Por um lado, este ritmo de trabalho é frustrante e remete para uma ideia de grandiosidade que os filmes em si nunca sustentam. Por outro, é como se as pausas entre projetos fossem o tempo necessário para as ideias fermentarem e chegarem a níveis de perfeição difíceis de encontrar na oeuvre de outros cineastas. Há uma qualidade deliberada nos filmes de Chang-dong que sombreia cada gesto, cada fala e movimento de câmara, como se a própria brisa de vento ou os farrapos de nuvens no céu fossem parte de um desígnio deliberado do realizador.

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Três formidáveis atores dão vida a um argumento complexo, cheio de ambiguidades e mistério.

“Em Chamas” é o perfeito exemplo disso mesmo, oferecendo uma ideia de precisão cinematográfica que é quase opressiva para o espectador, um filme fechado sobre si mesmo, imaculado e intocável. Tais qualidades não são necessariamente positivas ou negativas, mas parecem apropriadas no contexto da história que Chang-dong aqui se propõe a contar. Adaptado de um conto de Haruki Murakami, “Em Chamas” foca-se na figura de um jovem isolado, sem rumo ou grandes ambições que dá pelo nome de Lee Jong-su. Certo dia, enquanto faz entregas como parte do seu trabalho part-time, ele é abordado por uma jovem que, inicialmente, Jong-su não reconhece. Ela é Shin Hae-mi, uma velha amiga de infância do protagonista, também ela oriunda de uma localidade que está tão próxima da fronteira com a Coreia do Norte que, se prestarmos atenção, é possível ouvir a propaganda vinda do outro país.

Hae-mi é sedutora e misteriosa, com uma face transformada por cirurgias plásticas, algo que ela confessa com um sorriso na cara antes de acusar Jong-sung de lhe ter chamado feia quando eram miúdos. Tais palavras sugerem que pode haver desejo de vingança na sua performance de sedução, mas é difícil entender o que lhe vai na cabeça. Isto acontece, pois “Em Chamas” é uma narrativa completamente presa aos limites cognitivos e emocionais do seu protagonista e Jong-su, não obstante a sua curiosidade, não parece estar de todo interessado em compreender Hae-mi enquanto um ser humano. Tal dinâmica entre a audiência e as personagens é ainda mais exacerbada quando aparece uma nova personagem.

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Depois de deixar Jong-su com a responsabilidade de dar de comida a um gato cuja existência é uma constante incerteza, Hae-mi viaja até África. Quando volta, o seu suposto amigo de infância está à sua espera no aeroporto, como um devoto namorado, mas, ao seu lado, está uma figura inesperada. Ben é atraente e rico, com um nome anglófono e o tipo de disposição distante e expressão de aborrecimento que pintam uma perfeita imagem de privilégio. Para Jong-su, ele é como um alien de outro universo, tão diferentes são os mundos em que os dois homens se movem. Tais diferenças não impedem Hae-mi de se imiscuir no círculo social de Ben e consigo trazer Jong-su, que parece ser o único capaz de percecionar o desprezo condescendente com que o outro homem vê a nova companheira. Convém dizer que “Em Chamas” tem praticamente duas horas e meia e a dinâmica destas três figuras centrais só emerge já passado quase metade desse tempo.

O ritmo é glacial e mesmo para fãs de slow cinema, trata-se de uma proposta um tanto ou quanto desafiadora. Chang-dong aproveita tal excesso para construir um exercício formidável de observação humana, usando os próprios limites da nossa perceção como ponto de partida para a exploração do tema. Jong-su é uma figura antissocial e está sempre a fechar-se sobre si mesmo, como que impedindo a audiência de perscrutar a sua interioridade e obrigando-a a fazer julgamentos com base em ações estranhas e reações silenciosas. Hae-mi é o esboço de uma pessoa pois vemo-la através dos olhos de quem só se interessa por ela enquanto objeto sexual. Por seu lado, Ben é conspicuamente inescrutável, quiçá um monstro que olha para as vidas alheias como uma pessoa olha para formigas ou talvez só um jovem arrogante e insensível como tantos outros.

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Estaremos perante mais uma obra-prima de Lee Chang-dong?

O que é real e o que é uma ilusão nascida das lacunas da nossa observação, do preconceito e do medo, do desejo e da mentira, é outro tema e dinâmica que abrange toda a narrativa e desenvolvimento de personagens. O exemplo máximo disso é o gato que parece tirado diretamente das ponderações de Erwin Schrödinger, mas também temos a história sobre estufas a arder que dá nome ao filme ou mesmo os talentos de Hae-mi enquanto atriz e mimo. Num momento hipnótico, testemunhamos o detalhado processo de ela a comer uma laranja, quando nas mãos da mulher só há ar e vazio. Quando uma das três figuras desaparece, é difícil saber se se tratou de um evento violento ou mais uma performance do vazio. Jong-su, de qualquer modo, não deixa que as suas reações violentas sejam comedidas pela dúvida.

Além disso, Chang-dong também desenha um brilhante estudo sobre as hierarquias sociais do seu país, onde vidas paralelas, como as de Ben e Jong-su, são tão díspares que até podiam ser oriundas de universos diferentes. A mise-en-scène que possibilita tudo isto, a música de Mowg e a fotografia de Hong Kyung-pyo são de uma precisão cortante, mas não escondem a hubris alienante com que o realizador concebeu um filme que é limitado pelos próprios parâmetros que o texto estabelece para si mesmo. O elemento que acaba por ofuscar qualquer potencial fragilidade da obra é o trabalho de ator. Como Jong-su, Hae-mi e Ben respetivamente, Yoo Ah-in, Jun Jong-seo e Steven Yeun são absolutamente geniais, encontrando inúmeras maneiras de dar vida às ambiguidades do guião de um modo que não trai as intenções textuais, mas também não permite que as personagens se tornem ideias nebulosas desprovidas de humanidade ou verismo comportamental. Graças a eles, “Em Chamas” quase se mostra merecedor do estatuto de obra-prima que tantos cinéfilos e críticos lhe têm dado desde a sua estreia na Croisette.

“Em Chamas” vai ser exibido, no âmbito do IndieLisboa, dia 10 de maio, às 21:45 no Cinema São Jorge. Depois disso, o filme tem estreia comercial agendada para 16 de maio. Não percas!

Em Chamas, em análise

Movie title: Beoning

Date published: 27 de April de 2019

Director(s): Lee Chang-dong

Actor(s): Yoo Ah-in, Steven Yeun, Jun Jong-seo, Kim Soo-kyung, Choi Song-ho, Mun Seong-kun, Min Bok-gi, Lee Soo-jeong, Ban Hye-ra, Cha Mi-kyung, Lee Bong-ryeon

Genre: Drama, Mistério, 2018, 148 min

  • Cláudio Alves - 85
  • José Vieira Mendes - 70
78

CONCLUSÃO:

“Em Chamas” é um miasma de técnica cinematográfica nos píncaros da disciplina formalista e a indisciplina indulgente de um realizador magistral. Os atores fazem milagres e o guião é de uma complexidade avassaladora, mas há algo que impede o trabalho final de chagar às mesmas glórias que os anteriores filmes de Lee Chang-Dong. Além disso, é demasiado comprido e a alienação que tanto caracteriza o seu drama nem sempre é um benefício para a qualidade da obra.

O MELHOR: O trabalho de ator.

O PIOR: O ritmo glacial que demonstra mais indulgência que sagacidade da parte de Lee Chang-dong.

CA

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