"Errante Corazón" | © Keplerfilm

Queer Lisboa ’22 | Errante Corazón, em análise

Leonardo Sbaraglia, mais famoso pelo seu desempenho secundário em “Dor e Glória,” dá tudo o que tem em “Errante Corazón.” Este filme do argentino Leonardo Brzezicki tem feito boa carreira no circuito dos festivais por todo o mundo, conquistando, entre outras honras, o prémio para Melhor Ator em Málaga.  Chega agora o filme ao Queer Lisboa 26, onde integra a Competição de Longas-Metragens. Resta saber se o sucesso internacional se reflete nas decisões do júri português.

Histórias sobre crises de meia-idade são mato no panorama cinematográfico, especialmente quando são lamentações focadas em protagonistas masculinos. Contudo, é raro ver essas narrativas fora da ordem heteronormativa que tanto domina a cultura. Por outras palavras, já está na altura de assistirmos a um bom filme sobre gente queer em plena crise de meia-idade, um trabalho que celebre as especificidades desse milieu distinto e retrate as particulares ansiedades desta gente distinta. Como que em resposta à súplica cinéfila aqui expressa, Leonardo Brzezicki faz isso mesmo em “Errante Corazón.”

errante corazon critica queer lisboa
© Keplerfilm

Trata-se de um estudo de personagem tão sui generis quanto banal – quiçá no paradigma queer, estas duas vertentes sejam as mesmas. Afinal, tão raras são estas histórias no cinema mainstream que a celebração do mundano ganha potência singular. Enfim, indo além da importância do filme em termos representativos, há que refletir sobre a história contada. Ele é o melodrama de Santiago, pai solteiro e assumidamente gay que está em processo de cura sentimental. Uma separação recente destabilizou-lhe a vida, despertando uma sede por conexão que muito transcende o simples desejo sexual.

Não que o nosso protagonista desassocie as duas ideias ou mesmo que elas devam ser separadas. A busca de intimidade emocional pode muito bem passar pela comunhão de corpos, algo comum nas esferas de vivência queer em que este homem passa os dias. Logo a segunda sequência da fita encontra Santiago no meio de uma orgia, a câmara cambaleando com ele de quarto para quarto, mirando nudez e sexo, sem pudor ou julgamento. Num quarto, o sexo suado é espetáculo público, enquanto noutro canto está um jovem nu lendo poesia, quiçá filosofia, em voz alta. É um teatro hedonista na esfera doméstica, tratado com casualidade e sem sensacionalismos tolos.

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Contudo, este festim do corpo despido, da nudez explícita tão rara em cinema, serve de contraste entre o que o sexo quer e o que o espírito pede. Na situação em que se encontra, Santiago não quer ligação passageira, mas sim algo mais durador, o que o coloca numa posição estranha neste tipo de cenário. Ora apelando a amigos antigos ou gritando para com um ex-namorado, ele é um poço sem fim de necessidade sentimental, um corpo sedento de amor que trata a companhia como uma droga. Há que tudo fazer para se manter a solidão bem longe. Faz-se barulho, para evitar a autorreflexão que vem com o silêncio.

A esta missão, esta descoberta da companhia amorosa, junta-se o temor de um patriarca cuja filha está determinada a partir. Santiago tem relação próxima com Laila, sua progénie, mas os dois são uma combinação caótica cujas discussões tendem a tornar-se histeria. O abuso do álcool e da folia são vícios partilhados, qual herança de sangue, mas o desespero também se reflete de pai para filha. O elo entre os dois é posto à prova ao longo de um verão passado entre a Argentina e o Brasil, entre casas de amigos e mães distantes, entre o êxtase e outro poço de desespero. Não que “Errante Corazón” seja história compartilhada entre dois protagonistas.

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© Keplerfilm

Esta é sempre uma obra centralizada em torno de Santiago e suas angústias pessoais. A forma reflete isso mesmo, sempre cheia daquele tremelique da câmara ao ombro e matizes de cor que acompanham o estado emocional do homem. Há um apelo ao naturalismo extremo, mas também uma vertente estilizada que faz explodir um arco-íris de granulosidade quando Santiago finalmente cai na indulgência do bom sexo. É claro, contudo, que esse interlúdio dá lugar a mais um movimento de desespero, mais uma autossabotagem. No entanto, por instantes, viveu-se na plenitude do sensualismo e o filme lá se inflamou de desejo vingado.

Os epítetos da luxúria são alguns dos melhores pontos de um filme que, ocasionalmente, peca pelo lugar-comum melodramático e pela redundância estética. Miranda de la Serna não ajuda com o seu retrato de Laila, ameaçando ofuscar até as mais brilhantes performances em seu redor. A mais luminosa das quais é a de Leonardo Sbaraglia, pois claro. Cheio de melancolia e ardor, portador de um coração vagabundo e uma alma ardente, Santiago é o tipo de personagem que qualquer ator sonharia em interpretar. Sbaraglia finca os dentes no sonho e nunca vacila, dando o corpo ao manifesto e a alma também. Nunca ele lima as arestas vivas da personagem ou esconde seus egoísmos, suas facetas mais feias. O resultado final é um sublime trabalho de ator, o tipo de caracterização que faz um filme e eleva o drama. Uma salva de palmas para Leonardo Sbaraglia!

Errante Corazón, em análise
errante corazon critica queer lisboa

Movie title: Errante Corazón

Date published: 20 de September de 2022

Director(s): Leonardo Brzezicki

Actor(s): Leonardo Sbaraglia, Miranda de la Serna, Eva Llorach, Iván González, Alberto Ajaka, Tuca Andrade, Rodrigo dos Santos, Beatriz Rajland, Juan Ignacio Ugüet, Benjamín Ruiz, Verónica Hassan, Vanesa Maja, Margarita Molfino

Genre: Drama, 2021, 112 min

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO:

Contando um conto do homem desesperado, preso numa crise de meia-idade onde a solidão é o maior inimigo, “Errante Corazón” vale pela honestidade com que retrata o seu protagonista e aborda os dilemas dele. Preza-se a candura sexual, a carnalidade da imagem e a especificidade queer do texto. Contudo, será justo dizer que este é o tipo de filme que existe sobretudo como montra para os talentos de um ator. Apesar de ser um triunfo limitado, nesse aspeto, “Errante Corazón” é um indiscutível triunfo. Abençoado seja o belo Sbaraglia.

O MELHOR: Sbaraglia, pois claro.

O PIOR: Uma estrutura repetitiva, a prestação de la Serna, algumas escolhas audiovisuais que tendem a anonimizar o esforço de Brzezicki e companhia limitada.

CA

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