Queer Lisboa ’22 | Wet Sand, em análise
No ano passado, “Wet Sand” de Elene Naveriani estreou no Festival de Locarno. Dentro da competição Cineastas do Presente, a coprodução suíço-georgiana ceifou o prémio para Melhor Ator, dado a Gia Agumava. Agora, o filme integra a Competição de Longas-Metragens no 26º Queer Lisboa, onde se habilita a ganhar mais umas honras e muitos aplausos também.
Elene Naveriani é uma artista plástica da Geórgia que, nos últimos anos, tem vindo a expandir os seus horizontes criativos ao cinema. Para a sua segunda longa-metragem, a realizadora colaborou com o irmão, Sandro, com quem concebeu uma narrativa entre o mistério e a desoladora tragédia. Trata-se de um comentário sobre a sociedade georgiana e a corrupção do preconceito, um estudo sobre o modo como pequenas comunidades se podem tornar em horticulturas de ódio. Quando o tempo da colheita se manifesta, ninguém está a salvo e os marginalizados são destituídos de qualquer dignidade ou direito, da sua própria humanidade perante o olhar coletivo.
Tudo começa às margens do Mar Negro, numa vila costeira onde a gente se esconde por trás de máscaras sorridentes, as boas maneiras um subterfúgio que esconde a podridão interna. É um daqueles sítios em que todos se conhecem, sem ninguém saber as verdades mais íntimas do outrem, preferindo projetar o rumor e a pressuposição sobre a tela do desconhecido. Neste ambiente de segredos e segredinhos, coscuvilhice mesquinha a toda a hora, o corpo de um homem local aparece enforcado em casa. Eliko morreu e ninguém parece particularmente predisposto a fazer-lhe o luto.
No café da praia que dá nome ao filme, as más línguas aludem à estranheza do defunto, ao modo como ele se comportava em jeito superior ao resto da comunidade e o jeito em que a sua descendência abandonou a vila pela cidade. Ninguém diz o que pensa diretamente, mas depressa entendemos qual era o grande crime de Eliko – ele era homossexual. Entre os mal dizeres e a conversa sobre enterrar ou não enterrar o homem, uma voz da razão se faz ouvir. Amnon, o estoico proprietário do café, defende que Eliko era parte da comunidade, um cliente regular e fiel, merecedor das honras de um funeral. Nem que tenha de ser ele a pagar a cova, o enterro vai acontecer.
Uma aliada curiosa junta-se a Amnon nesta soturna missão. Moe é a neta de Eliko, vinda de parte incerta para tratar dos afazeres fúnebres e outras tarefas que vêm de mãos dadas com a morte do avô. Em traje colorido e cabelo curto pintado, ela é uma assombração de modernidade no meio dos conservadorismos coletivos da vila. É também um sopro de juventude que depressa chama a atenção aos outros poucos jovens da vila – um polícia e a rapariga que ajuda Amnon no café-bar. Quase tão inexpressiva como o outro homem, esta rapariga com nome de rapaz é severa e furiosa, perfeitamente ciente do que os outros pensam sobre o avô e cheia de raiva perante a humilhação post-mortem.
Acontece que a neta partilha algumas das características do avô, sua identidade queer e estatuto enquanto ovelha negra para a maioria tradicionalista. A interseção de dor e raiva é assim multiplicada, não só em nome do morto, mas também em gesto de imagem própria e dignidade pessoal. É neste contexto de complicadas emoções que Moe e Amnon encontram mais pontos de união além do respeito por Eliko. Assim se fazem iluminar revelações chocantes que ajudam a pintar “Wet Sand” como uma tragédia. Aliás, o melodrama seria inevitável não fosse a disciplina rigorosa com que Elene Naveriani dirige a cena e realiza a fita.
Há uma grande severidade transversal a todo o edifício fílmico de “Wet Sand,” uma distância meio alienante que os cenários meio teatrais e a fotografia cheia de planos gerais ajudam a perpetuar. Em contraste, a sonoplastia sublinha a intimidade, criando um jogo de aproximação e distanciamento que ajuda a conter tanto a frieza como o sentimentalismo desnecessário. Também o casting ajuda a conter o sentimento forte, sendo que Naveriani escolheu trabalhar principalmente com atores amadores. Esta estratégia traz os seus problemas, mas também concede algumas bênçãos. Gia Agumava, no papel de Amnon, é uma verdadeira revelação.
Ele interpreta o senhor solene com magnífica secura, alguns pontos de abertura deixados aqui e ali para suavizar o retrato e transmitir a devastação total da história. Sim, “Wet Sand” é um conto devastador, cheio de considerações sobre como honrar os mortos e a logística do luto, da reza, da lembrança respeitosa. Longe de criar um postal dessas essas vilas costeiras na ruralidade georgiana, Naveriani concebe um filme pictorialmente belo, mas muito ríspido também. Tal como Agumava, ver a obra é experiência seca, mas paradoxalmente comovente. Somos levados ao epíteto da indignação, partilhando a revolta de Moe e aplaudindo seus mais pequenos gestos de resistência. No final, a módica sugestão da resistência dá esperança ao exercício, terminando tudo numa nota que quase se assemelha ao final feliz.
Wet Sand, em análise
Movie title: Wet Sand
Date published: 20 de September de 2022
Director(s): Elene Naveriani
Actor(s): Bebe Sesitashvili, Gia Agumava, Eka Chavleishvili, Zaal Goguadze, Kakha Kobaladze, Megi Kobaladze, Giorgi Tsereteli
Genre: Drama, 2021, 115 min
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Cláudio Alves - 72
CONCLUSÃO:
Entre o estudo social e a colisão da liberdade pessoal com o vício da tradição, “Wet Sand” conta um conto desolador com um inesperado toque de felicidade em tempos de término. O formalismo rigoroso e o casting neorrealista propõem uma conflagração de técnicas que nem sempre coerem, mas mantém o projeto num patamar que inspira fascínio e apela à análise séria.
O MELHOR: A severidade conjunta que se manifesta na fotografia de Agnesh Pakozdi e na performance de Gia Agumava.
O PIOR: Tirando o ator premiado em Locarno, o elenco amador é um grande ponto fraco da fita, salientando algumas das suas qualidades mais miserabilistas e redutivas.
CA