Eddington, de Ari Aster e La Petite Dernière, de Hafsia Herzi, entre a paranoia americana e a crise identitária juvenil | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 6)
Os dois filmes que estrearam ontem na Competição Oficial do Festival de Cannes 2025 revelam visões contrastantes mas intensamente pessoais sobre sociedades em ruptura. “Eddington”, de Ari Aster, mergulha na paranoia coletiva da América pandémica, enquanto “La Petite Dernière”, de Hafsia Herzi, traça o percurso íntimo de uma jovem muçulmana a descobrir-se em Paris. São retratos poderosos de mundos à beira do colapso — social, político ou interior.
Pela primeira vez em competição, Ari Aster troca o horror psicológico pelo comentário social com Eddington, um western moderno situado em plena crise pandémica nos EUA, produzido pela dinâmica A24. Três anos depois de Beau Tem Medo, o realizador americano regressa com um elenco de luxo — Joaquin Phoenix, Pedro Pascal, Emma Stone e Austin Butler — para pintar uma América desorientada, onde as fronteiras entre realidade e delírio ideológico se esbatem.
O faroeste pandémico
O filme de Ari Aster desenrola-se numa pequena cidade do Novo México, em maio de 2020, pouco depois do assassinato de George Floyd. A tensão entre o xerife conservador Joe (Phoenix) e o prefeito progressista Ted (Pascal) transforma-se numa espiral de caos, com ecos de guerra civil. Com referências à pandemia, ao movimento Black Lives Matter, à polarização política e ao colapso da informação confiável, Aster cria um retrato grotesco e hiperbólico da era do confinamento, passado na América profunda.
Uma visão elíptica da América
Visualmente austero, narrativamente fragmentado, Eddington não é propriamente um filme fácil de acolher. Ari Aster aplica-lhe o seu estilo elíptico a um mundo onde o medo é político e a histeria transforma-se em violência. Ainda assim, a recepção foi de certo modo mista, aqui em Cannes: se por um lado o filme impressiona uns pela sua ambição e densidade, por outro há quem critique a falta de nuance e os personagens unidimensionais. Joe (Phoenix), o protagonista, é visto por exemplo, como uma caricatura do eleitorado de direita, enquanto os elementos satíricos por vezes tropeçam em lugares-comuns.
A crítica está polarizada
A estreia em Cannes do filme, gerou algumas discussões inflamadas no seio da crítica mais experiente nestas andanças dos festivais, o que parece confirmar uma clara intenção de Ari Aster: provocar, dividir e obrigar à reflexão. Eddington pode não ser a obra definitiva sobre a América pandémica, mas é, sem dúvida, um espelho inquietante do seu trauma coletivo.
“La Petite Dernière”: Um drama delicado de pertença
Com La Petite Dernière, a actriz agora realizadora francesa Hafsia Herzi brilha com um drama delicado sobre a fé, desejo e pertença. Se Ari Aster olha para o exterior e para o colapso das instituições, Hafsia Herzi, vira-se para dentro, para as pessoas, para uma jovem rapariga em crise de identidade. La Petite Dernière, é a sua estreia na competição oficial após as suas passagens como realizadora, pela Semana da Crítica e Un Certain Regard. Desta vez, Herzi adapta o romance semi-autobiográfico de Fatima Daas para explorar a descoberta da identidade e a dor do crescimento num contexto cultural desafiante: o Islão em França.
A fé e a sexualidade de uma jovem
Fátima, 17 anos, vive como pais e as irmãs num subúrbio de Paris. Eximia jogadora de futebol, estudante exemplar, entra na faculdade de Filosofia e é aí, no confronto com novos mundos e ideias, que vê-se obrigada a questionar a sua fé, os laços familiares e a sua própria orientação sexual. Muçulmana praticante, Fátima descobre-se homossexual num meio onde isso é, no mínimo, problemático.
Com Nadia Melliti — uma revelação entre os não-profissionais — no papel principal, Herzi constrói um filme de grande sensibilidade e honestidade. A câmara acompanha Fátima com ternura e rigor, sem recorrer ao melodrama. O elenco de rostos desconhecidos acentua a autenticidade de uma história que fala de pertença, resistência e coragem pessoal.
Herzi a crescer como realizadora
La Petite Dernière é, antes de mais que um filme, um gesto político (o de Ari Aster também o é) e íntimo de grande sensibilidade. Herzi, vencedora recente do César de Melhor Atriz, mostra-se cada vez mais madura como cineasta, e não tem medo de abordar temas delicados como a sexualidade no Islão, o peso da tradição e a força das redes de apoio. A recepção em Cannes foi calorosa, sem ser demasiado empolgante, com destaque para a subtileza do argumento e a força da jovem Melliti.
Entre o colapso social e o renascimento pessoal
Se há um traço comum entre Eddington de Ari Aster e La Petite Dernière de Hafsia Herzi , é a ideia de mundo em transição. Aster mostra uma América à beira da implosão, onde o medo e o ódio ganham forma política. Herzi, por sua vez, mostra uma jovem em desconstrução, a tentar encontrar um lugar entre a fé e o desejo. Dois filmes muito diferentes, mas ambos urgentes, comprometidos e profundamente humanos.
Com Cannes a meio caminho, para a Palma de Ouro 2025, estas obras marcam o festival pela sua ousadia temática e abordagem singular. E assim, o Diário de Cannes 2025 continua a revelar o cinema como espelho do tempo que vivemos — inquieto, contraditório e sempre à procura de sentido.
JVM