Chatila (Mahmood Bakri) é tão carismático quanto contraditório. ©thestoneandplot/Divulgação

A Uma Terra Desconhecida – Análise

“A Uma Terra Desconhecida” de Mahdi Fleifel é o thriller mais realista que vamos ver este verão nos cinemas, ainda por cima sobre um  tema que não podia ser mais actual: dois refugiados palestinianos retidos em Atenas, entre golpes falhados e sonhos partidos, num filme que nos esfrega na cara a hipocrisia mundial sobre Gaza e os imigrantes. Chega às salas portuguesas a 24 de julho

“A Uma Terra Desconhecida” de Mahdi Fleifel, chega finalmente às salas portuguesas, depois da retrospectiva há dias no Curtas Vila do Conde 2025, dedicada ao realizador e da Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes 2024  para nos lembrar que, por muito que a Europa se encha de discursos humanitários, a realidade dos refugiados continua a ser um filme de terror sem efeitos especiais. Por isso, esqueçam os thrillers de ação com super-heróis e drones supersónicos.

O verdadeiro suspense, o que nos deixa realmente colados à cadeira, está neste olhar desesperado de quem espera por um passaporte falso em Atenas, sabendo que a vida — e a dignidade — dependem de um pedaço de papel e de um carimbo inexistente.

Malik (Mohammad Alsurafa) é um miúdo de Gaza. ©The Stone and Plot/Divulgação

Entre Atenas e o inferno

Mahdi Fleifel, o realizador palestiniano que cresceu na Dinamarca e já nos tinha dado um documentário brutalmente honesto “A World Not Ours” — um retrato de três gerações de exilados no campo de refugiados de Ain el-Helweh, no sul do Líbano, baseado numa vasta coleção de gravações pessoais, arquivos familiares e imagens históricas —,  faz com “A Uma Terra Desconhecida” a sua estreia na ficção com uma narrativa que é meio buddy movie, meio golpe de faca no estômago.

Dois primos palestinianos, Chatila (Mahmood Bakri) e Reda (Aram Sabbah), estão retidos em Atenas à espera dos tais documentos que prometem abrir as portas da Alemanha. Mas, como em qualquer boa tragédia moderna, quando o desespero aperta, a moral evapora-se. Os dois acabam a inventar esquemas para sobreviver, explorando o desespero de outros refugiados que sonham com Itália como se fosse a Disneyland da liberdade.

Thriller humano e mordaz

“A Uma Terra Desconhecida”  alterna entre momentos de amizade frágil e traições inevitáveis, entre golpes mal planeados e aquela sensação constante de que, para um refugiado, tudo pode correr mal em menos de um segundo.

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Chatila, uma personagem tão carismática quanto contraditória, lidera esta ‘sobrevivência às avessas’, ora com um charme de vigarista sedutor, ora com um cinismo que denuncia tanto a hipocrisia alheia como a sua própria. Angeliki Papoulia, a atriz grega de “Dogtooth”, surge como Tatiana, uma mulher que se deixa arrastar pelo caos emocional de Chatila, enquanto o pequeno Malik (Mohammad Alsurafa), um miúdo de Gaza, oferece o último fio de inocência num mundo podre de exploração.

Angeliki Papoulia e Mahmood Bakri
Angeliki Papoulia, a atriz grega de “Dogtooth”, surge como Tatiana. ©The Stone and Plot/Divulgação

Um filme sobre a Europa que não quer ver

É impossível assistir a “A Uma Terra Desconhecida” sem pensar na situação atual em Gaza, nas fronteiras fechadas e nas políticas de fachada. O filme tem essa inteligência rara: é um thriller que também é um manifesto, uma narrativa que nos obriga a olhar para aquilo que todos preferem ignorar.

A fotografia crua e a direção de arte transformam Atenas numa espécie de purgatório contemporâneo, um labirinto de prédios degradados, vielas antigas e rostos invisíveis, os tais que a Europa prefere não ver nos seus cartões-postais turísticos.

JVM

“A Uma Terra Desconhecida”, a Crítica | Quando a sobrevivência é o único passaporte
  • José Vieira Mendes - 75

Conclusão:

“A Uma Terra Desconhecida” não é um filme para quem procura finais felizes nem para quem acredita que a Europa é uma terra de acolhimento. É um murro seco na cara e um lembrete de que, enquanto assistimos a dramas confortáveis em sala climatizada, há milhares de ‘Chatilas’ e ‘Redas’ a lutar pela vida em becos reais e campos de refugiados. Mahdi Fleifel conseguiu fazer um filme urgente, humano e mordaz.

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Pros

O melhor: As interpretações de Mahmood Bakri e Aram Sabbah, a tensão quase insuportável em algumas cenas e a honestidade crua com que Fleifel expõe o absurdo da sobrevivência sem documentos. E, claro, a decisão do distribuidor português The Stone and the Plot, de doar 20% das receitas do filme à Seeds of Hope, uma iniciativa que realmente faz diferença em Gaza, não apenas na propaganda.

Cons

O pior: Há momentos em que a narrativa quase se perde em esquemas secundários, e a intensidade pode deixar os espectadores mais ‘sensíveis’ de rastos. Mas, convenhamos, isto não é defeito: é sinal de que o filme nos atingiu onde dói.


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