Denise Weinberg. ©Guillermo Garza (Desvia)/Divulgação.

O Último Azul – Análise

“O Último Azul” oscila entre a fábula e a denúncia e o brasileiro Grabriel Mascaro filma a Amazónia como palco de resistência. Tereza, 77 anos, só quer voar. E leva os espectadores com ela.

Há realizadores que ainda insistem em olhar para o Brasil como ‘o país do futuro’. Gabriel Mascaro é um deles, mas tem a inteligência de perceber que esse futuro pode ser um pesadelo com palmeiras, decreto governamental e cheiro a baba de caracol. “O Último Azul” é a sua mais recente fábula distópica, um cinema político, com coração, humor e uma veterana atriz principal que arrasa a plateia com uma personagem carregada de sonhos.

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Tereza contra o mundo (e contra o governo)

A heroína desta viagem em “O Último Azul” é Tereza (Denise Weinberg, absolutamente deslumbrante), 77 anos, trabalhadora, lúcida, dona do seu nariz. Até que um decreto decide que já não serve para nada. O governo obriga todos os idosos a mudar-se para colónias ‘de descanso’, libertando espaço de trabalho para os mais jovens. Um descarte institucional, em nome da produtividade, que soa a ficção mas poderia estar em qualquer reunião ministerial sobre ‘sustentabilidade do sistema’.

Só que Tereza tem um sonho simples e, por isso mesmo, intransigente: voar de avião. A filha recusa-se a dar-lhe a autorização burocrática necessária (sim, o Estado obriga os velhos a pedir licença aos filhos para tudo), e Tereza decide fugir. O resultado é uma viagem clandestina rio acima pelo Amazonas, um ‘boatmovie’ cheio de encontros insólitos, onde o realismo social se mistura com rituais místicos e um humor fino.

Um Brasil que envelhece mal

imagem de O Último Azul
Rodrigo Santoro e Denise Weinberg em “O Último Azul” © Nitrato Filmes/Divulgação

Em “O Último Azul” Mascaro volta a fazer aquilo que melhor sabe: usar um cenário exuberante para falar de feridas sociais. Em “Divino Amor” (2019) apontava a câmara às igrejas evangélicas e à religião como forma de controlo. Agora é a velhice, essa idade em que o corpo resiste mas a sociedade prefere não ver. A metáfora é evidente e, ao mesmo tempo, necessária: no país jovem por excelência, o futuro pode ser um lugar onde os velhos se tornam um incómodo a esconder.

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Rodrigo Santoro aparece quase irreconhecível como Cadu, um barqueiro que lhe mostra os poderes mágicos de um líquido azul retirado da baba de um caracol (há coisas que só o realismo fantástico latino-americano consegue pôr em cena sem cair no ridículo). Já Roberta (Miriam Socarrás) é a companheira de viagem que lhe abre novas possibilidades de liberdade, quase como se a amizade tardia fosse também um ato político.

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Entre o riso e o arrepio

O Último Azul
“O ùltimo Azul”, tem qualquer coisa de realismo fantástico. ©Nitrato Filmes/Divulgação

Há muito humor em “O Último Azul.” Não um humor para gargalhar, mas um sorriso cúmplice perante a burocracia absurda, os vendedores de bíblias digitais ou as pequenas vinganças contra o sistema. Ao mesmo tempo, há momentos em que a distopia arrepia.

O filme constrói-se nesse equilíbrio: é belo e mágico, mas também um alerta. Visualmente, é deslumbrante. Guillermo Garza filma a Amazónia como um organismo vivo, ora encantatório, ora opressivo. A banda sonora, de Memo Guerra, por vezes exagera no sublinhado cómico, mas ajuda a manter a viagem num tom híbrido entre fábula e a denúncia.

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Denise Weinberg, rainha absoluta

O Último Azul
Rodrigo Santoro aparece quase irreconhecível como Cadu. ©Nitrato Filmes/Divulgação

Se “O Último Azul” funciona tão bem, deve-se sobretudo a Denise Weinberg. A sua Tereza é uma personagem daquelas que ficam: teimosa, carismática, capaz de partir corações e arrancar aplausos. Weinberg tem 71 anos e parece estar no auge da carreira. E que ironia tão bonita para um filme que fala precisamente de quem é descartado por ter ‘idade a mais’. Velhos são os trapos!

JVM

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O Último Azul — Análise
  • José Vieira Mendes - 75

Conclusão:

“O Último Azul” de Gabriel Mascaro não é uma obra-prima no sentido estrito (às vezes a metáfora é demasiado óbvia, outras vezes a narrativa perde-se em paragens supérfluas), mas é um filme que vibra, respira e permanece. É um cinema político que não abdica do poético, e um cinema poético que não foge ao político. Teve aplausos de pé na Berlinale 2025 e um Urso de Prata – Grande Prémio do Júri, algo que lhe confere um estatuto de obra maior no contexto do cinema brasileiro. E, mais importante: trata-se de um filme que nos lembra que envelhecer não é um fardo é apenas mais uma forma de continuar a viver, se possível saudável e arejado de físico e cabeça.

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Pros

O melhor: Denise Weinberg é um furacão sereno. As paisagens amazónicas, filmadas com sensualidade e força. A fusão de distopia política com realismo fantástico e humor.

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Cons

O pior: O sublinhado da mensagem, às vezes demasiado didático. A banda sonora, que nem sempre confia no silêncio.

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