Claudia Cardinale (1938-2025) | Acabou-se a valsa…
Claudia Cardinale, a diva que era uma anti-diva, uma das últimas grandes estrelas italianas morreu aos 87 anos. Trabalhou com Visconti, Fellini e Sergio Leone, mas nunca quis ser tratada como uma deusa intocável.
A dança acabou. Aquela mesma que ficou para sempre na história do cinema, a longa valsa entre Burt Lancaster e Claudia Cardinale em “O Leopardo” (1963), de Luchino Visconti. Quando, em 2024, Claudia Cardinale lamentou então a morte de Alain Delon (1935-2024), recordou essa cena como se fosse um pedaço de eternidade. E na verdade é….Agora é ela quem parte, deixando órfãos todos os que cresceram com as suas imagens gravadas a fogo na memória cinéfila. Morreu em Nemours, perto de Paris, rodeada pela família.
Uma tunisina-italiana
Claudia Cardinale nasceu em Túnis, em 1938, filha de sicilianos emigrados. Cresceu entre línguas e culturas, sem nunca imaginar que o cinema a chamaria. Sonhava ser professora, até que um concurso de beleza a levou a Veneza. A princípio resistiu: dizia que não queria ser atriz, não queria câmaras nem holofotes. Mas o destino — e o olhar de Mario Monicelli — arrastaram-na para “Gangsters Falhados” (I soliti ignoti, 1958). Ainda sem falar bem italiano, com medo do set, foi lançada para o estrelato.
A dança da eternidade
E que estrela foi Claudia Cardinale. Entre 1960 e 1963, apareceu em sucessivos filmes que a consolidaram como a nova cara do cinema italiano: “Rocco e os Seus Irmãos” (1960), de Luchino Visconti; “O Belo António” (Il bell’Antonio, 1960), de Mauro Bolognini; “A Rapariga da Mala” (1961), de Valerio Zurlini. O reconhecimento internacional chegou com “O Leopardo”, em Cannes, em 1963, e com o papel luminoso em “8½” (1963) de Federico Fellini. Itália tinha encontrado, depois de Sophia Loren e Gina Lollobrigida, outra atriz para se impor no mundo.
As portas de Hollywood
Hollywood, claro, abriu-lhe as portas. Blake Edwards fê-la brilhar em “A Pantera Cor-de-Rosa” (1964); John Wayne partilhou com ela o ecrã em “O Mundo do Circo” (1964) de Henry Hathaway; Rock Hudson tornou-se amigo para a vida. Mas Claudia Cardinale nunca se deixou iludir pela tentação americana: preferia Roma e Paris, preferia estar perto dos realizadores que a desafiavam verdadeiramente. E foi assim que Sergio Leone lhe deu Jill em “Era Uma Vez no Oeste” (1968), talvez a personagem feminina mais memorável de todo o western europeu.
Uma vida privada conturbada
Se o cinema lhe deu fama, a vida não lhe deu facilidades. Claudia Cardinale foi mãe solteira em segredo, vítima de abusos e prisioneira de contratos opressivos com o produtor Franco Cristaldi. Mas encontrou na arte um refúgio e transformou cicatrizes em energia criativa. “Entro nos papéis a partir da minha própria vida”, confessava. “Talvez porque a minha vida nunca foi fácil.”
Um regresso em força
Na década de 1970 libertou-se de Cristaldi e começou uma longa relação com Pasquale Squitieri, com quem teve a filha Claudia. Ao lado dele, procurou novas aventuras no cinema italiano e francês, entre grandes autores e jovens realizadores. Reencontrou Liliana Cavani em “A Pele” (1981), desafiou Werner Herzog em “Fitzcarraldo” (1982), foi em 1984 “Claretta” (Petacci) de Pasquale Squitieri, Matilde em “Enrico IV” (1984) de Marco Bellocchio, Maria Madalena com Franco Zeffirelli (“Jesus de Nazaré”, 1977) e protagonista de “La Storia”, (1986), de Luigi Comencini, adaptação do clássico de Elsa Morante.
Sempre a reinvertar-se
Claudia Cardinale nunca deixou de se reinventar. Descobriu o teatro, apoiou cineastas emergentes, aceitou produções independentes. Sempre com a mesma filosofia: o cinema não era fuga, era forma de viver. “Vivi outras vidas para viver melhor a minha”, dizia.
A cidadã consciente e activa
E nunca foi apenas uma atriz. Lutou contra a SIDA, foi embaixadora da UNESCO, defendeu causas de mulheres e refugiados. Recebeu o Leão de Ouro de carreira em Veneza 1993, o Urso de Ouro honorário em Berlim 2002, a Legião de Honra em França. Aceitou distinções com gratidão, mas sem vaidade. Detestava a palavra “diva”. Queria ser apenas Claudia.
O cinema não a deixa morrer
É isso que fica. Não só os prémios, mas as imagens: Angélica de branco a rodopiar em Visconti; Jill a enfrentar pistoleiros (Charles Bronson Henry Fonda e Jason Robards) em Leone; a frescura cúmplice em Fellini. Imagens que fazem parte de nós e até das nossa fantasias de adolescente. E que fantasias… Claudia Cardinale morreu. Mas o cinema não a deixará morrer. Enquanto houver uma sala escura e um olhar apaixonado, ela continuará a dançar, a dançar, com aquele tom de pele e aquele sorriso malandro do sol mediterrânico, entre a memória e a eternidade.
A mulher poesia que me levou a dar o seu nome a minha filha.