"Ato Noturno" | © Avante Filmes

Queer Lisboa ’25 | Ato Noturno – Análise

Marcio Reolon e Filipe Matzembacher regressam ao Queer Lisboa depois de terem passado no festival em edições anteriores, apresentando obras tão meritosas como as reflexões intimistas de “Beira-Mar” e os erotismos arrojados com que “Tinta Bruta” arrebatou audiências em 2018. O último filme, “Ato Noturno” ou “Night Stage” no mercado anglófono, aparece-nos no seguimento dessas longas-metragens, mais um passo na evolução cinematográfica desta dupla brasileira cuja filmografia continua a merecer aplausos pela renúncia à vergonha e aos moralismos mais corriqueiros, sua rejeição da heteronormatividade e dos bons costumes.

Tudo começa naquele momento expectante antes do ensaio, uma pausa, um prelúdio, uma respiração incompleta. A câmara pondera o palco no qual vários corpos se dispõem, pernas rubras pelo figurino vermelho e torsos ao descoberto por detrás de blusas transparentes. O corpo está em evidência, sua expressividade muscular afigurando-se o centro da performance prestes a acontecer. Mas, antes do caos estudado se impor em cena, o zoom precipita-nos a atenção para um dos atores. Ele é Matias, um jovem afro-brasileiro cheio de ambição e um olhar que nos confronta, fitando a câmara diretamente e, por consequência, o espectador do outro lado da tela.

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Na verdade, ele não nos vê a nós, mas a uma diretora de casting que veio assistir ao ensaio, quiçá na procura de um novo talento para o projeto televisivo que se rumora estar em desenvolvimento na região. Quando o pandemónio se instala, numa dança que mais parece pancadaria, é fácil supor que a violência cénica deriva, em parte, de um desespero latente por impressionar essa senhora. E assim é, pois, chegada aos bastidores, ela concede sua graça a um dos intérpretes, convidando-o ao casting para a série. Só que não será sobre Matias que ela brilha a luz do potencial estrelato. Afinal, ele é demasiado delicado, efeminado e preto para o arquétipo comercial de vedeta.

Ao invés dele, é Fabio, companheiro de cena e de casa, quem sai do teatro com um sorriso nos lábios. Talento é fator menor nestes assuntos, sendo o padrão muito querido e tudo o que foge à regra posto de lado – as personagens mais fluidas estão na moda, sua vez há de surgir, diz a diretora. Contudo, isso sabe a mentira, uma perpetuação das ordens opressivas da sociedade e um sistema artístico que finge progressismo sem lutar por esses valores quando a norma promete lucros maiores. Sentimos as paredes abater-se sobre Matias, escassezes de oportunidade vinculadas à identidade do rapaz que, ou muda ou finge mudar, ou será sempre um nicho.

Sexo é político, especialmente quando é público.

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Assistir à humilhação do jovem dá vontade de gritar, dando início ao acumular de ressentimentos e raivas ultrajadas que, pouco a pouco, fazem da personagem e sua história uma espécie de bomba-relógio. Perante a frustração, “Ato Noturno” rende-se aos prazeres da carne e até a linguagem audiovisual parece buscar o ébrio do desejo. A fotografia cintila na noite brasileira, o luar em azul garrido que se quebra pela intromissão voyeurística de luzes âmbar. Neste registo, corpos parecem monumentos, erotizados até ao limite, tão belos que me deixam sem palavras. Por seu lado, a banda-sonora segue ondas lascivas, em ritmos sinuosos e a provocação de harpas dedilhadas.

Em contextos onde a paixão é rainha, Matias presta-lhe vassalagem e prova a devoção com o sexo anónimo, os apps de engate ditando-lhe o caminho pela noite fora. É assim que ele se cruza com Rafael, um homem tão misterioso quanto aliciante, com quem passa um serão orgástico em cenário de palacete. Quando a possibilidade de serem apanhados surge, só lhes dá mais pica e inflama os corpos de prazer, introduzindo um paradoxo à volta do qual muita da narrativa orbitará. Acontece que Rafael é candidato a prefeito da cidade, o tipo de figura sujeita ao escrutínio do público e a expectativas conservadoras, valores de família e tudo o mais.


Ele é o extremo do gay discreto que separa a sexualidade da restante vida e faz disso o princípio supremo do dia a dia. Ou, pelo menos, a expectativa é essa, não fosse Matias um desestabilizador supremo. Entre os dois, floresce a paixão e o fetiche do sexo público, jogos transgressivos que os avassalam, qual vício, qual êxtase, qual transcendência de si mesmos. O comportamento é de risco, sem dúvida, mas “Ato Noturno” reconhece que a essência do perigo não está na comunhão de corpos ou na quebra do tabu. Não estamos perante nenhum moralismo histérico sobre promiscuidades doentias.

Na verdade, são os sistemas patriarcais que ameaçam os amantes ao mesmo tempo que os seduzem com promessas de sucesso. Basta sacrificarem quem são, fazerem da sua verdade um segredo e vergarem perante o conformismo, para que aqueles no poder os abençoem e elevem acima do comum mortal. Ao início, Reolon e Matzembacher parecem propor uma dinâmica faustiana, na qual Matias vende a alma às tentações de um Rafael feito Mefistófeles. Dito isso, deixem o texto revelar surpresas e dimensões trágicas e descobrirão, tal como eu fiz, quanto essas presunções estavam erradas. Porque, no final, Rafael é tão Fausto quanto Matias, mesmo assumindo os privilégios raciais que os diferenciam.

Cinema queer mais radical do que se possa supor.

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“Ato Noturno” brinca com as possibilidades do thriller erótico e distorce-as com uma sensibilidade queer muito distinta da heterossexualidade que sempre definiu o subgénero. O exibicionismo dos amantes implica estratégias formais muito próprias, assim como um tenor romântico capaz de englobar o obsceno sem dele fazer antónimo do amor. Também há paralelismos entre o prazer de ser visto no epíteto do prazer e a performance perante uma audiência, ora no teatro de atores ou nos palcos da política. Em certa medida, ser visto é um ato de resistência e afirmação que, quando feito em falsos pretextos, pode ser arma do status quo ao invés do seu rival.

No meio disto tudo, a figura de Fabio concentra em si os maiores clichés da narrativa, assim como algumas das suas observações mais cáusticas. Afinal, ele é o prototípico homem branco, hétero, bem-parecido, bruto e mulherengo, um herói macho a quem todo o mundo pertence e sempre pertenceu. Quando a oportunidade que ele julga ser sua por direito ameaça cair nas mãos de um amigo marginalizado, há algo vagamente psicótico na sua incapacidade de encarar o ocorrido como algo que não traição. Não só de Matias, mas do universo de forma geral, como se a possibilidade destes privilégios recaírem sobre a pessoa errada ditasse uma perversão da realidade.

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É fácil prever todo o arco dessa personagem secundária logo de início, mas a sua interseção com a história dos amantes, o modo como influencia as conclusões da fita, ainda consegue suscitar alguma surpresa. Muito ajuda que a prestação de Henrique Barreira quase justifica o foco em Fábio por si só. Não que ele seja o melhor ator em cena, diga-se de passagem. Ivo Müller fascina mais como a sombra sanguinária às margens do enredo, enquanto Gabriel Faryas e Cirillo Luna fincam os dentes nos papéis principais e dão tudo o que têm ao altar deste “Ato Noturno”. O resultado é glorioso, com Faryas a destacar-se com especial força, uma estrela em ascensão do cinema brasileiro que aqui assinala o seu primeiro filme.

Perante o elenco, a forma sensualista e as temáticas desinibidas, é fácil supor que “Ato Noturno” é daquelas obras que vingam exclusivamente pelos estímulos púdicos. Só que essa seria uma menorização do que Reolon e Matzembacher alcançam, dos riscos tomados e dos radicalismos sugeridos. Sem ser um objeto de valor panfletário ou educativo, “Ato Noturno” deve ser celebrado como um exemplo do cinema queer onde noções do corpo e do sexo enquanto manifestações políticas são postas ao descoberto. A barreira entre o público e o privado também é esbatida, tanto pela prática exibicionista como por um final operático onde cai o Carmo e a Trindade e se esfrega a hipocrisia patriarcal com um orgasmo rebelde, sangue, suor e sémen.

Ato Noturno

Conclusão:

  • Marcio Reolon e Filipe Matzembacher regressam ao Queer Lisboa com a sua melhor longa-metragem até à data, deixando para trás as delicadezas de um cinema mais pessoal e intimista em prol da ópera em cenário de cruising e figurino fetichista. Trata-se de “Ato Noturno,” onde a performance do ator em cena e do político perante as massas se cruzam na forma de um amor proibido entre Matías e Rafael. A história deles é o reflexo de um mundo agrilhoado aos bons costumes e suas hipocrisias patriarcais, onde o preço para o sucesso é a conformidade absoluta.
  • Dito isso, quem aqui espera encontrar uma daquelas tragédias soturnas do homem gay forçado a reentrar no armário, desengane-se. “Ato Noturno” pode flirtar com o ocasional cliché, mas sua derradeira forma define-se pelo radicalismo, pela surpresa, pelo cuspo na cara do moralismo provinciano. De facto, vai ser difícil a outro filme no festival superar o êxtase atingido nos últimos minutos desta fita.
  • Como nota final, fica uma salva de palmas para a fotografia sensualista de Luciana Baseggio e uma banda-sonora a condizer com assinatura de Arthur Decloedt, Thiago Pethit e Charles Tixier. Também os atores merecem apreço, tanto aqueles em papéis mais secundários, como as estrelas nos papéis principais. Gabrial Faryas, em particular, tem aqui um fabuloso início de carreira no grande ecrã.
Overall
8.5/10
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