“Sombras” — Análise
Quando o horror não vem dos monstros mas de complexas relações conjugais. O realizador português Jorge Cramez estreia-se esta semana nas salas de cinema no sub-género ‘folk horror’ com este seu novo filme “Sombras” provando que o verdadeiro terror não é uma criatura que espreita na escuridão da noite, mas os silêncios que minam uma relação a dois.
Marta, Jaime e o campo que não salva ninguém, são os protagonistas de “Sombras”. Há casais que decidem trocar o trânsito da Segunda Circular pelo sossego de uma casa entre oliveiras. Marta (Victoria Guerra) e Jaime (Pedro Lacerda) parecem pertencer a esse grupo de pessoas. Não têm filhos, mas recebem por uns dias a pequena Beatriz, filha do vizinho (Dinis Gomes), que tem de ausentar-se. O problema é que, em vez de encontrar a paz bucólica, o casal descobre que no campo as sombras são ainda mais densas e que, pior do que o coaxar das rãs, é o som do silêncio quando já não há nada para dizer, entre os dois. Cramez usa a aparição de um animal insólito como motor narrativo, mas o que verdadeiramente interessa não é o bicho é o que este desencadeia. A pergunta que persegue o espectador é simples: será o monstro real ou apenas uma projeção das fracturas de um casal?
O terror doméstico disfarçado de ‘folk horror’
“Sombras” poderia ser apenas mais um exercício de ‘terror português’ (um sub-género que ainda arrasta os pés), mas não é. Jorge Cramez reinventa-se depois de “O Capacete Dourado” e das suas experiências mais soltas como “Amor Amor”. Aqui, a criatura é só uma desculpa: a verdadeira assombração é a rotina de uma relação gasta ou traumática, onde os gestos de ternura já não colam e o amor confunde-se com hábito e rotina. Victoria Guerra assume o centro do filme com uma interpretação cheia de nuances, entre o medo, a contenção e o desespero.
Pedro Lacerda acompanha, mais preso ao papel do homem racional que não sabe lidar com o irracional. E a pequena Catarina Machado, enquanto Beatriz, — muito bem dirigida, aliás — é o rosto do mistério: a criança inocente ou o catalisador? Nunca o sabemos ao certo.
As sombras como alegoria
O argumento de “Sombras” da autoria de Rita Benis — a premiada argumentista que já colaborou, entre outros, com os realizadores como Teresa Villaverde, Margarida Gil, Inês Oliveira, António da Cunha Telles, Vincent Gallo e Catherine Breillat — não se limita a assustar-nos: coloca-nos diante daquilo que não queremos ver. O animal é a metáfora perfeita para todos os monstros que cada casal esconde no armário. A criança é o detonador, o espelho do que falta. O campo, que deveria ser refúgio de paz, torna-se palco de assombração. Cramez filma tudo com uma câmara que se vai aproximando em close-ups sufocantes, até nos deixar sem ar. A fotografia alterna entre luz solar e tons soturnos, reforçando a instabilidade entre o real e o simbólico. O terror não é apenas estético: é existencial. Aquele ritual de transe com os trabalhadores migrantes é que não entendemos muito bem o que esta ali a fazer, como aliás as quase duas horas de duração, para deslindar este ‘mistério’ dos afectos e por vezes da complexidade do amor. Valia mais ter concentrado tudo um pouco mais. Em todo o caso é um razoável ensaio para uma ainda pequena galeria de filmes do ‘terror português’.
JVM
Sombras — Análise
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José Vieira Mendes - 65
Conclusão:
“Sombras” não é apenas um filme de terror é sobretudo, um estudo sobre as pequenas tragédias da vida a dois. Jorge Cramez constrói um cinema que recusa o pânico fácil e prefere mergulhar nos medos íntimos: os da rotina, da ausência de filhos, do desgaste conjugal. O monstro existe? Talvez. Mas o que realmente aterroriza é perceber que, no fundo, ele pode ser só a projeção de nós próprios.
Overall
65User Review
( votes)Pros
O melhor: A coragem de usar o folk horror como metáfora da vida conjugal; Victoria Guerra em registo intenso, a provar que é das grandes atrizes da sua geração; o trabalho de câmara que transforma o campo português num espaço ameaçador.
Cons
O pior: Algumas convenções do género (os jumpscares) parecem inseridas apenas para cumprir caderno de encargos do filme de terror; um final que talvez pudesse arriscar mais na ambiguidade e menos na falsa serenidade.