Hermínia (Mina Andala), uma cuidadora negra, reabre feridas antigas. ©PNGPictures

“A Memória do Cheiro das Coisas” — Análise

Em “A Memória do Cheiro das Coisas”, António Ferreira filma o peso da velhice e das feridas coloniais com poesia e contenção. José Martins e Mina Andala brilham num duelo de silêncios onde a redenção é tão frágil quanto o corpo que envelhece. Mais um filme português premiado internacionalmente que chega esta semana às salas de cinema, depois de ter passado pelo Tribeca Festival Lisboa 2025.

Há filmes que nos falam ao ouvido, outros que nos falam ao coração e depois há “A Memória do Cheiro das Coisas”, que nos fala ao nariz, à pele e à memória. António Ferreira regressa ao grande ecrã com uma obra de aparente simplicidade mas de profundíssima humanidade, um daqueles filmes que não grita, não implora, apenas respira. Lentamente, como o corpo cansado do seu protagonista, um homem que já viveu o suficiente para saber que há coisas que o tempo não apaga apenas transforma em (mau) cheiro. Arménio (José Martins, numa interpretação de outra era) é um ex-combatente da guerra colonial portuguesa. O filme começa quando tudo parece já ter acabado: a guerra, a juventude, o casamento, o orgulho. Forçado a viver num lar, rodeado de cheiros de desinfetante e sopa aguada, ele carrega um odor invisível: o do medo e da culpa. A chegada de Hermínia (Mina Andala), uma cuidadora negra, reabre feridas antigas e, paradoxalmente, oferece-lhe a única forma possível de cura: o contacto humano. Ferreira filma este encontro com a contenção de quem sabe que o silêncio é mais eloquente do que qualquer discurso. Há poucos diálogos, e ainda menos explicações. O essencial está nas pequenas coisas: o olhar desconfiado que se amacia, a mão que hesita antes de tocar, o som da respiração que enche os corredores. É um cinema que cheira — literalmente — à vida que se gasta e à morte que se aproxima.

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A Memória do Cheiro das Coisas
José Martins, que venceu o prémio de Melhor Ator em Xangai. ©PNGPictures

O cheiro da culpa

António Ferreira — que já nos tinha dado Pedro e Inês, uma tragédia de amores eternos — volta agora a mergulhar em territórios de dor íntima e memória coletiva. Mas em “A Memória do Cheiro das Coisas” o drama é microscópico: é o de um homem que sobreviveu à guerra, mas não à lembrança do que fez (ou do que deixou de fazer). O filme não procura reescrever a História nem apontar dedos. O que faz, e com uma delicadeza rara, é lembrar que a culpa é uma herança genética portuguesa. E que o racismo, tantas vezes inconsciente, é apenas o eco surdo dessa ferida mal cicatrizada. Hermínia, interpretada com enorme dignidade por Mina Andala, é o espelho dessa inversão simbólica: a mulher negra que cuida do homem branco que outrora foi soldado de um império colonial. Mas o filme recusa o moralismo fácil. Ferreira não quer que a plateia sinta vergonha, quer que sinta empatia. E, de forma quase milagrosa, consegue.

VÊ TRAILER DE “A MEMÓRIA DO CHEIRO DAS COISAS”

Um cinema de cheiros, sons e silêncios

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A fotografia de “A Memória do Cheiro das Coisas” tem o grão da luz envelhecida: quentes castanhos, verdes húmidos, brancos gastos. É um cinema sensorial, de texturas e memórias, onde o som do vento ou o chiar de uma porta substituem o diálogo. Ferreira filma o lar de idosos como um purgatório, um limbo entre o passado e o esquecimento. Mas, em vez de recorrer à miséria estética do “realismo sujo”, o realizador opta por uma ternura melancólica, quase lírica. José Martins, que venceu o prémio de Melhor Ator em Xangai, constrói um Arménio que é mais gesto do que palavra. Cada respiração sua carrega décadas de silenciamento e repressão. É uma daquelas interpretações em que o corpo fala: o andar arrastado, o olhar que foge, o toque que, quando finalmente acontece, é quase uma oração.

A Memória do Cheiro das Coisas
Há poucos diálogos, e ainda menos explicações, entre os dois protagonistas Arménio e Hirminia. ©PNGPictures

O tempo que não se apaga

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“A Memória do Cheiro das Coisas” é, acima de tudo, um filme sobre a inevitabilidade do tempo. Sobre o que resta quando tudo o resto desaparece. O lar torna-se uma metáfora do país: uma nação envelhecida, encerrada na própria memória, onde o passado colonial continua a cheirar a mofo, e o futuro, quando chega, tem o rosto e o cuidado de quem foi outrora silenciado. Há ecos de Manoel de Oliveira e de Ken Loach neste cinema que se recusa a ser espetáculo. Ferreira filma com a serenidade de quem acredita que a poesia pode ser política. E é precisamente isso que faz de “A Memória do Cheiro das Coisas” um filme importante: a forma como fala de velhice, racismo e empatia sem levantar a voz, sem pedir desculpa e sem precisar de gritar “denúncia!” para ser ouvido.

A Memória do Cheiro das Coisas
José Martins, tem uma interpretação de outra era. ©PNGPictures

O poder de ver o outro

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“Este é um filme sobre aprender a ver o outro”, disse António Ferreira ao receber a Menção Honrosa para Melhor Argumento no Festival de Tânger. E é exatamente isso que o filme propõe:  a aprendizagem da empatia como ato de resistência. Num tempo em que tudo é ruído e pressa, “A Memória do Cheiro das Coisas” é um gesto quase revolucionário: pede-nos que paremos, que cheiremos, que escutemos, que olhemos. No fim, o espectador sai da sala com uma sensação estranha, como se tivesse respirado dentro de outra vida. E talvez seja esse o verdadeiro milagre do cinema: fazer-nos sentir o cheiro do que não é nosso, mas poderia (ou poderá) ter sido.

JVM

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A Memória do Cheiro das Coisas — Análise
  • José Vieira Mendes - 80

Conclusão:

“A Memória do Cheiro das Coisas” é um filme que  nos deixa um nó na garganta e ao mesmo tempo uma serenidade rara. É um filme pequeno em gestos, mas imenso em humanidade.  Aliás essa serenidade é também o seu maior trunfo, num filme que pede tempo, respiração e disponibilidade emocional. No fundo, o que António Ferreira nos oferece é uma experiência sensorial e moral, um convite à empatia num país que ainda cheira a silêncio e onde, por vezes, é preciso um filme assim para voltarmos a sentir o que foi a Guerra Colonial e os seus efeitos. António Ferreira confirma-se também como um dos cineastas portugueses que melhor filma o silêncio — aquele que fica depois das palavras gastas — e José Martins assina a melhor interpretação da sua carreira, discreta e devastadora. Mina Andala, com a sua presença luminosa, traz o equilíbrio e a dignidade que salvam o filme da melancolia pura.

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Pros

O melhor:  a interpretação de José Martins mas também a delicadeza da relação entre Arménio e Hermínia, no pudor dos afectos, na forma como o passado colonial se insinua sem discursos, apenas através de gestos e olhares.

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Cons

O pior: é talvez a contenção excessiva, a lentidão que pode afastar um público menos paciente ou mais habituado à agitação narrativa.

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