O Amigo Gigante, em análise

O Amigo Gigante, de Steven Spielberg consegue ser uma obra requintada na maneira como concilia uma estória clássica com os mais contemporâneos efeitos visuais. 

Verdade seja dita, nenhum cineasta contemporâneo consegue gerar tanto fascínio junto do público americano, e junto de uma audiência internacional, tendenciosamente mainstream, do que Steven Spielberg. De obra em obra cinematográfica, o cineasta com agora 69 anos mantém, com sabedoria, o estilo que tanto delicia os mais velhos como os mais novos públicos. Depois de A Ponte dos Espiões e Lincoln terem comprovado a sua vertente mais alinhada no enquadramento histórico, político e social e, acima de tudo, na história do seu país natal, os Estados Unidos da América, Spielberg retoma outros mundos, paralelos aqueles com o qual aprimorou e eternizou a sua marca em Hollywood, nomeadamente dentro do registo do conto. E não é que mantém o mesmo nível de excelência?

Em O Amigo Gigante, encontramos o ator Mark Rylance, que colaborou com Spielberg em A Ponte dos Espiões, e com o qual ganhou o Óscar de melhor ator secundário, numa performance capture bem ao nível daquilo que já tinha sido experimentado pelo realizador em As Aventuras de Tintin – O Segredo de Licorne (2011), nomeadamente com os atores Andy Serkis, Jamie Bell e Daniel Craig. Nele, a captação das expressões faciais e de todos os gestos dos intérpretes foi realizado à priori para, de imediato, ser sobreposto com outras expressões, isto é, por desenhos, completamente modelados por computador. Por sua vez, e por mais incrível que possa parecer, tudo incorpora a narrativa do filme com uma certa pureza e magia. De facto, existe um balanço entre a maneira como O Amigo Gigante conta a sua estória com a utilização plausível e corrente da mais avançada tecnologia digital. Trata-se, devidamente, de um estilo que até agora, neste ano, nenhum cineasta conseguiu desenvolver com tanto coerência – vejam-se as mais recentes adaptações de videojogos ao cinema, sobretudo o caso paradigmático de Batman V Superman que recaiu sobre a mais corriqueira das excentricidades técnicas.

Efetivamente, essa que é a primeiríssima qualidade de O Amigo Gigante, em muito graças à sua personagem principal, o GGG (Grande Gigante Gentil) – em inglês BFG (Big Friendly Giant) -, esse ‘meio’ holograma, ‘meio’ humano que Rylance, de 55 anos, ator vindo de uma geração do teatro, interpreta com inocência. Sem dúvida, tudo como Roald Dahl (1916-1990), o autor do livro e também de Charlie e a Fábrica de Chocolate, provavelmente exigiria.

O Amigo Gigante

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A par das qualidades de Rylance, está a mais intrometida personagem do filme, Sophie, das poucas personagens a não ser criada digitalmente e a ser desempenhada por uma jovem atriz britânica de 12 anos, a desconhecida Ruby Barnhill – por enquanto a estrela revelação do ano. Saliente-se que este é o seu primeiro papel no mundo do cinema, mas o seu à vontade é tão frequente, que esquecerá que é uma desconhecida por estas andanças. A sua Sophie é uma menina de 10 anos que todos os dias fica acordada até tarde no orfanato onde mora desde bebé. Extremamente imaginativa e esperançosa, a jovem lê livros sob a luz de uma lanterna, nas várias vezes em que não consegue dormir, até que uma noite o gigante, que distribui sonhos pelos habitantes londrinos, leva-a consigo para evitar que a sua presença seja revelada aos jornais e às agências secretas. Então, Sophie irá travar amizade com esse gigante fora do comum, que não devora criancinhas, mas que é vegetariano – vejam-se ainda as ‘diferenças’ entre seres que o cinema de 2016 tem implementado neste sentido, e que passam pelo género da animação, como Zootrópolis, O Panda do Kung Fu 3 e À Procura de Dory.

A estória de O Amigo Gigante consegue transmitir esse lado mais infantilizado que, inclusive, sustenta a obra literária – veja a maneira como as personagens conversam umas com as outras ou o modo como reagem, muito semelhantes aos desenhos do livro de Quentin Blake. Quer o veja de um ponto de vista negativo ou positivo, tem de presumivelmente de aplaudir o trabalho da argumentista Melissa Mathison (que faleceu durante as filmagens em 2015), que mantém-se fidelíssima ao conto de Dahl. Também argumentista de E.T. – O Extraterrestre, próximos apenas pelo cariz da intriga, Mathison e, claro Spielberg recorrem a um maior classicismo, seja pela existência de ‘bons’ e ‘maus’ da fita, seja por tornar Sophie uma inesperada heroína, encontrando, fora os clichés, as suas extraordinárias capacidades numa criança inteligente, corajosa e que, à partida, não teria nada para ser feliz.

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O Amigo Gigante

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O Amigo Gigante tem ainda uma direção artística assombrosa, com cenários, ora mais lamacentos, ora mais requintados. O contraste é dado pelo País dos Gigantes com o Palácio da Rainha de Inglaterra (Penelope Wilton, atriz de Downton Abbey e de O Exótico Hotel Marigold), personagem que mesmo sem nome próprio são-lhe reconhecíveis algumas características da Rainha Isabel II, de Helen Mirren.

As imagens também encantam, com muito prazer. Veja-se a capacidade do Gigante realizar uma série de truques de camuflagem, quando está em Londres. Spielberg e o seu habitual diretor de fotografia, Janusz Kaminski, dedicam-se extremamente a criar imagens gráficas, seja na reflexão do gigante, que numa determinada cena, aquela de captação dos sonhos, fica de cabeça para baixo quando está refletido sobre a água ou quando Sophie, ao início, está escondida no seu cobertor, e a câmara persegue, em ziguezague, como os seus olhos, o local onde mora esse Amigo Gigante. Cada imagem em que Spielberg prova uma e outra vez como dar aso à curiosidade e à imaginação. Cada tempo e espaço dos seus filmes são aventuras que mais cedo ou mais tarde tornam-se memórias de uma determinada época pela qual passamos.

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Sem esquecer, como é óbvio, a banda-sonora novamente nostálgica de John Williams. O compositor com 51 nomeações aos Óscares, das quais conta com 5 vitórias, mantém a mestria dos outros filmes em que compôs para Spielberg e, ainda tem esse lado transcendente muito próximo de Star Wars: O Despertar da Força ou dos filmes de Harry Potter. Embora as notas musicais comecem bastante devagar, após a chegada de Sophie ao País dos Gigantes tornam-se mais aceleradas, antes de voltar a desacelerar no final. É um privilégio único ouvir John Williams a evocar um lugar para nós, humanos, distante. A maneira como aposta num conjunto de sons complexos sem esforços fará, até o espetador mais novo descobrir mais sobre a sua carreira. Ademais, existe um tema parecido com o “Rey’s Theme”, próprio da personagem de Daisy Ridley em Star Wars, com o título “Sophie and the BFG”, parte de uma fugaz banda-sonora que fica no ouvido, pelo menos enquanto esperamos pelo seu próximo projeto.

O Amigo Gigante

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Antes de terminar, importa referir que o conceito estória é mais adequado para rotular O Amigo Gigante do que história, sobretudo porque contam-se momentos de um mundo imaginário, das pequenas situações e peripécias que envolvem o quotidiano de um gigante (que, como verá, não é tão gigante assim) e de uma miúda que, no final de contas, quer apenas um lar. Não se tratam dos grandes eventos históricos ou de factos verídicos que encontre na Enciclopédia Mundial, como os anteriores projetos de Spielberg convocam, corrobora mais uma dimensão fantasiosa, do  genuíno conto infantil (afinal esta é a primeira colaboração de Spielberg com a Walt Disney).  Enfim, O Amigo Gigante é um filme divertido que atinge o seu expoente quando o gigante conhece a corte britânica. Destacam-se as metáforas num mundo que é maioritariamente visto pelos olhos de uma criança, que afinal de contas usa óculos.

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O MELHOR: Mark Rylance e Ruby Barnhill

O PIOR: Embora classicismo e simultaneamente vanguardista, o argumento de O Amigo Gigante pode não conquistar todos os adolescentes, sendo especialmente direcionado para pais e para os seus filhos.  


 

Título Original: The BFG
Realizador:  Steven Spielberg
Elenco: Mark Rylance, Ruby Barnhill, Penelope Wilton, Jemaine Clement e Rebecca Hall
NOS | Família, Aventura, Fantasia | 2016 | 117 min

O Amigo Gigante

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VJ

 

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