‘Aquarius’ e o Novo Cinema Pernambucano
‘Aquarius’, com Sônia Braga, estreia finalmente nas salas portuguesas. O filme de Kleber Mendonça Filho é agora a crista de uma onda de um cinema pernambucano, que tem sido desde o início desta década o melhor cinema brasileiro da actualidade e a sua maior representação e premiação nos festivais internacionais. Afinal o que representa esta nova onda do cinema pernambucano?
O cinema pernambucano é sem dúvida um cinema completamente fora-dos-eixos. Além de estar fora do tradicional eixo criativo das metrópoles do Rio de Janeiro-São Paulo, as produções audiovisuais pernambucanas são pela sua novidade e irreverência, uma lufada de ar fresco no cinema brasileiro e mundial da actualidade. Embora estreiem poucos filmes brasileiros em Portugal, desde o início de 2010 que tenho assistido a uma notável afirmação dos filmes de Pernambuco — a capital é no Recife —, nos principais festivais de cinema europeus, filmes esses que têm mostrado que há algo de novo no cinema brasileiro e mundial.
Vê 69º Festival de Cannes (Dia 8) |O Brasil como um ‘Aquarius’
É o caso precisamente agora de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho — foi aclamado na competição do Festival de Cannes 2016 — Boi Neon, de Gabriel Mascaro — Prémio Especial do Júri na Mostra de Veneza 2015 — e apenas há alguns dias de Big Jato, de Cláudio Assis — Melhor Filme e Melhor Actor (Matheus Nachtergaele) no FESTin, Lisboa 2017.
UMA NOVA VAGA DE FILMES
Esta nova vaga do cinema do Recife, tem passado discretamente por Portugal, mas tem sido apresentada sobretudo graças ao olhar atento do Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira e também do FESTin. Na realidade, o meu encontro com o cinema pernambucano não foi há muitos anos e confesso que nunca vi Baile Perfumado (1996), com realização conjunta de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, considerado ‘um marco da retomada do cinema pernambucano’. Estive no Festival de Gramado 2013 e no CINE PE 2014, no Recife e talvez o meu interesse pelo cinema pernambucano tenha despertado com O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho no IndieLisboa 2012 e com dois filmes do Cláudio Assis: Febre do Rato (no FESTin 2011) e Amarelo Manga (2002).
Já tinha visto as curtas do Kleber Mendonça Filho — um crítico de cinema brasileiro, que conhecia de vista desde que ambos começamos a fazer a cobertura dos grandes festivais europeus em 2000 — no Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, muito antes de O Som ao Redor. Recordava sobretudo a objectividade de Crítico (2008), um documentário do Kleber sobre a crítica de cinema em Cannes.
E de facto foram estes filmes que acabaram por me abrir as portas para a produção cinematográfica de realizadores pernambucanos como: Gabriel Mascaro (Doméstica, Boi Neon) Marcelo Gomes (Madame Satã, — em parceria com o Karim Aïnouz —, Cinema Aspirinas e Urubus, Viajo Porque Preciso Volto Porque te Amo, Era Uma Vez Eu, Verônica, O Homem das Multidões e Joaquim na Berlinale 2017), Lírio Ferreira (Sangue Azul), Camilo Cavalcante (A História da Eternidade), Marcelo Lordelo (Eles Voltam), Hilton Lacerda (Tatuagem), entre outros, que às vezes torna-se difícil recordar numa filmografia riquíssima em diversidade e em quantidade na última década.
O ROSTO DE IRANDHIR SANTOS
Além dos realizadores e dos filmes pernambucanos é incontornável a figura de Irandhir Santos, um actor do outro mundo, que enche o ecrã. Até fico arrepiado quando revejo a sequência da dança em rodopio ao som do tema Fala, de Ney Matogrosso em A História da Eternidade. Irandhir Santos é o rosto do cinema pernambucano e curiosamente tem funcionado como uma espécie de elemento de ligação entre os vários cineastas do Recife.
O actor tem 38 anos feitos em Agosto passado e é parte desta história do cinema pernambucano. Começou há uns 11 anos com um pequeno papel em Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes. Esteve no elenco de Velho Chico, a belíssima telenovela da Globo, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, passada no Nordeste do Brasil, que é tão bem feita que parece um filme. Foi através de Irandhir Santos que Cláudio Assis chegou a Daniel Bandeira (realizador de Amigos de Risco, mas também produtor, argumentista e montador), que Leonardo Laca (realizador de Permanência) se ligou a Camilo Cavalcanti em A História da Eternidade, e que Kleber Mendonça Filho trabalhou com o argumentista Hilton Lacerda (também realizador de Tatuagem).
No entanto, Irandhir Santos participou também em outros filmes brasileiros importantes como Tropa de Elite 2 — O Inimigo Agora é Outro, de José Padilha, com o realizador José Luiz Villamarim em Amores Roubados e Redemoinho, além de uma estrita colaboração com Luiz Fernando Carvalho nas prestigiadas telenovelas da Globo: A Pedra do Reino, Meu Pedacinho de Chão e a já referida Velho Chico. Irandhir Santos de facto não é um actor qualquer, pois segundo os próprios colegas e realizadores, não se limita a interpretar, mas antes quase sempre faz parte do processo de construção de um filme.
Vê sequência de A História da Eternidade
Alguns dos seus mais significativos personagens como o bêbado Maninho em Baixio das Bestas, ou o poeta Zico de Febre do Rato, ambos de Cláudio Assis, foram escritos por ele próprio. A parceria com o realizador e sobretudo argumentista Hilton Lacerda, que o dirigiu em Tatuagem, tem passado de filme para filme. Escrevem quase em conjunto, sem que o actor roube o importante papel de quem escreve ou dirige, mas ficando sempre com algumas margens para improvisar. Só em três anos, Irandhir Santos trabalhou em cerca de dez longas metragens e teve participações em papéis e filmes tão diferentes, como, Senhor do Labirinto, Quincas Berro D Água, Olhos Azuis e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, este último onde dá apenas a sua voz. O ator está ainda em alguns outros filmes que estão a ser finalizados, como os novos de Cláudio Assis e Kleber Mendonça Filho.
UM RETRATO DO BRASIL
Afinal o que caracteriza o cinema pernambucano do restante cinema brasileiro e o que têm estes filmes para mostrar de novo? Marcadamente sociais, os filmes pernambucanos não trazem apenas um regresso da luta de classes ao cinema brasileiro como o definia o ilustre crítico franco-brasileiro Jean-Claude Bernardet, comparando esta nova vaga do Recife ao Cinema Novo de Glauber Rocha e seus companheiros. O cinema pernambucano caracteriza-se principalmente por apresentar um esquema de produção que parece assentar sobretudo na amizade e na ajuda intergeracional entre realizadores, produtores, argumentistas, e montadores, no fundo um grupo de criativos que trabalham indiscriminadamente uns com os outros.
Curiosamente com uma rara cumplicidade nesta actividade na maior parte das vezes muito competitiva e pouco saudável do ponto de vista afectivo. Há de facto esse elemento de ligação que é Irandhir Santos, mas há também muitos outros bons actores, nem todos pernambucanos é um facto como Chico Díaz, Matheus Nachtergaele, Dira Paez, Jonas Bloch, Christiana Ubach, Hermila Guedes, Daniel de Oliveira, Jesuíta Barbosa, Juliano Cazarré, entre outros.
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E depois há sobretudo excelentes histórias e realizações que inovam na linguagem — uma perfeita contaminação do documentário com a ficção — e na incessante experimentação de métodos, requinte formal e uma certa ironia, que reflectem a realidade e paradoxos do Brasil contemporâneo: as relações de trabalho, desigualdade social de géneros e raças, a violência urbana e a violência contida assente na cultura do medo e na intimidação, os paradigmas da classe média entre a mediocridade, a falta de cultura e de ética, o consumismo, a especulação imobiliária e urbanística desordenada, as alterações no espaço urbano — como no documentário Morte Diária, de Daniel Lentini — a corrupção, entre outros temas da actualidade brasileira que é comum a outras partes do mundo.
No fundo, são filmes com uma enorme riqueza de temas universais, mas que giram quase sempre à volta e dentro da cidade do Recife, como uma espécie de microcosmos do Brasil, um País que forma quase um continente. O cinema pernambucano é de facto um cinema fora dos eixos e uma ‘boa viagem’ — como a famosa praia do Recife — pela vida e pela cultura da sociedade brasileira.
JVM