O filmes escuta a terra, os sons, os animais. ©Desforra Apache Distribuição/Divulgação

“As Estações” — Análise

Entre o real e o imaginário, a realizadora luso-francesa Maureen Fazendeiro em “As Estações” faz arqueologia com a câmara, escava a terra, o som e a memória de um povo e de uma região, até transformar o Alentejo num espelho poético de todas as eras.

Existem filmes que se fazem para mostrar ou explora a paisagem de um lugar. E há outros, mais raros, que o reinventam camada a camada, como quem escava um sítio arqueológico com a delicadeza de um poema. “As Estações”, de Maureen Fazendeiro, é  um “documentário do imaginário”, como lhe chamou a própria, e não há definição mais certeira: o que aqui se filma não é o Alentejo tal como o conhecemos, mas o Alentejo que se recorda, se sonha e se transmite. Estreado no último Festival de Locarno, recebeu o Prémio do Júri do DocLisboa 2025, este filme mergulha pacatamente nas camadas de presente, passado e futuro da região alentejana. A realizadora — luso-francesa, filha de emigrantes, nascida em Créteil — parte de uma descoberta quase acidental: um artigo de jornal sobre Vera e Georg Leisner, um casal de arqueólogos alemães que, em plena Segunda Guerra Mundial, percorreu o Alentejo a catalogar antas e monumentos megalíticos. Enquanto desenterravam os mortos de milénios passados em Portugal, o seu próprio país era destruído. Esse paradoxo — escavar o passado enquanto o presente se afunda — é o coração de “As Estações”. Fazendeiro percebeu nele a imagem perfeita do cinema: olhar para baixo e para trás para tentar perceber o agora.

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As Estações
Um documentário entre o real e o imaginário alentejano. ©Desforra Apache Distribuição/Divulgação

A arqueologia do olhar

Filmado ao longo de vários anos, “As Estações” mistura o rigor do documentário com a leveza do mito. Há registos de campo, entrevistas com pastores e trabalhadores rurais, cartas dos Leisner lidas em voz-off, mas também lendas inventadas por crianças, poemas e canções populares. Tudo cabe neste inventário de tempos e gestos. A câmara de Maureen Fazendeiro observa como quem tateia: move-se lentamente entre sobreiros e pedras, desliza pelos prados, ouve o vento antes de o filmar. Num plano inesquecível, percorre o tronco de um sobreiro como se acariciasse um corpo. É o cinema a transformar a paisagem em pele. A árvore, que aqui é símbolo e testemunha, torna-se a própria metáfora do filme: o que resiste, o que se renova, o que se inscreve na terra e continua a crescer. A realizadora chamou-lhe “um filme espiralado”, e é verdade: não há narrativa linear, apenas um movimento circular, das estações, do tempo, da História. O passado e o presente coexistem num mesmo campo de visão, e as vozes de ontem cruzam-se com as de hoje como se o cinema fosse um rádio intertemporal a captar frequências perdidas.

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O Alentejo real e o Alentejo inventado

Há um momento em que um velho alentejano fala do Charro, figura lendária que foi arrastada por um cavalo “por falar mal de quem mandava”. É só uma história, mas ecoa o medo e a resistência de tantas outras épocas: dos cartagineses ao Estado Novo, dos senhores da terra às reformas agrárias. Fazendeiro sabe que o Alentejo é também um arquivo de vozes silenciadas e dá-lhes microfone, tempo e dignidade. Mas este não é um filme de denúncia nem de nostalgia. “As Estações” não romantiza nem denuncia: escuta. Escuta a terra, os sons, os intervalos, o trabalho. Há o leite que se tira da cabra, o machado que corta a cortiça, o som dos passos na poeira. E há o bip-bip da máquina de medição que sonda o que está debaixo da terra: o som da arqueologia, o som da memória. É daí que nasce o cinema de Fazendeiro: debaixo da superfície, na camada invisível das coisas.

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As Estações
Há entrevistas com pastores e trabalhadores rurais. ©Desforra Apache Distribuição/Divulgação

A beleza e o risco da idealização

Filmar o Alentejo é sempre um risco: é fácil cair na tentação do postal ilustrado. Fazendeiro evita-a quase sempre. O 16 mm dá à imagem uma textura viva, mas também melancólica, como se o próprio tempo se gravasse na película. Ainda assim, há momentos em que o filme parece tão encantado com a sua própria beleza que quase a transforma em miragem. É o preço de um olhar estrangeiro e também o seu privilégio. Fazendeiro olha o Alentejo como quem o descobre pela primeira vez: não com o cansaço de quem o habita, mas com o espanto de quem o sonha. É isso que faz de “As Estações” um filme necessário. Precisávamos de alguém que nos lembrasse que o nosso país ainda tem muitas camadas por escavar.

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AS Estações
Um olhar sobre os monumentos megalíticos da região. ©Desforra Apache Distribuição/Divulgação

Um cinema que pensa com o corpo

Depois de “Diários de Otsoga” (2021), que co-realizou com o companheiro Miguel Gomes, Maureen Fazendeiro afirma-se aqui como autora de uma linguagem própria, feita de paciência, de ritmo, de comunhão. O seu cinema é físico e mental ao mesmo tempo: é preciso senti-lo para o compreender. A montagem é livre, quase orgânica; as imagens não se explicam, coexistem. Há nelas algo de Apichatpong Weerasethakul, esse mesmo cineasta que ensinou que o real e o sonho são apenas variações da mesma matéria. Fazendeiro segue essa trilha tropical mas traz o olhar europeu, disciplinado e sensorial, que lhe dá outra temperatura.

As Estações
Também se dorme à sombra de uma azinheira. ©Desforra Apache Distribuição

A estação do tempo humano

No fundo, “As Estações” é um filme sobre o tempo e sobre a necessidade de o aceitar. O tempo da terra, o tempo das pessoas, o tempo do cinema. O tempo que não volta, mas deixa marcas. O tempo que muda de forma, mas nunca de essência. O filme termina como começou: com a terra, com o som, com o gesto. Nada é conclusivo, tudo é contínuo. E é precisamente essa humildade que o torna tão belo e sereno. Fazendeiro filma o Alentejo como quem devolve à paisagem a sua própria voz. E talvez seja esse o maior gesto político do filme: dar tempo a quem sempre viveu fora dele.

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As Estações — Análise
  • José Vieira Mendes - 70

Conclusão:

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“As Estações” é um filme que não se apressa, não prova, não explica, respira. Maureen Fazendeiro devolve ao Alentejo a espessura do tempo e o silêncio das histórias que não cabem em museus, filmando a memória como quem toca na terra com a ponta dos dedos. É um cinema que se vive mais do que se vê, que nos obriga a abrandar e a escutar, lembrando-nos de que as paisagens não são apenas lugares são camadas, fantasmas, vozes. No fim, saímos como quem acorda devagar de um sonho antigo, com terra nas mãos e tempo nos olhos.

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Pros

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O melhor: O olhar sensorial e íntimo da realizadora; o uso hipnótico do 16 mm; a fusão delicada entre documentário, ficção e mito; a forma como o filme transforma terra, som e memória em matéria viva.

Cons

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O pior: Em alguns momentos o filme enamora-se demasiado da sua própria beleza visual; o ritmo lento e contemplativo pode afastar quem espera narrativa mais definida ou desenvolvimento dramático claro.


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