Prémios do Cinema Português: A Metamorfose dos Sophia 2022

‘O Último Banho’ de David Bonneville foi o vencedor-surpresa de Melhor Filme, quando o favorito até parecia ser ‘Bem Bom’. Porém também o documentário ‘A Metamorfose dos Pássaros’, de Catarina Vasconcelos, arrasou ganhando 4 das 6 nomeações. O cinema português está vivo é diversificado e recomenda-se! A Festa foi bonita pá!

Foi uma surpreendente Noite dos Sophia 2022, a soirée realizada ontem no Casino do Estoril, onde estava a nata e muita gente bonita, (que bom!), — as actrizes de ‘Bem Bom’, são uma graça e estavam com uns vestidos lindos — do cinema português que já sai à rua ou melhor foi até aos jardins do Estoril, bem vestida e engalanada; e sobretudo para fazer uma grande festa, sem preconceitos em relação ao glamour ou à passadeira vermelha; e até bridou e dançou na festa na discoteca Jazebel, ao lado, depois da cerimónia. Foi uma noite sem fim à boa-maneira de as ‘Doce’. E dir-se-ia que há uma verdadeira ‘metamorfose’ no rumo dos mais importantes Prémios do Cinema Português, mais ainda podem ir mais longe! O cinema português precisa um pouco mais disto — até para atrair o grande público, que bem precisa —  beleza, glamour, elegância, descontração e sobretudo um pouco de mais o humor, que também não faltou apesar da solenidade — discreta e no in memorium — numa cerimónia muito bem conduzida pela actriz Margarida Vila-Nova e o apresentador, radialista entertainment Pedro Miguel Ribeiro. Basta pensar o que eram os Prémios Sophia, no seu inicio e o que são agora: depois da reacção menos favorável que tiverem as suas primeiras edições, sobretudo de um determinado sector da actividade cinematográfica nacional — mais ligado ao ‘cinema de autor’ e aos produtores  alinhados mais com os circuitos dos festivais internacionais — a afirmação destes prémios do cinema português é total e passa inclusive, pelo profissionalismo da organização, pelas escolhas e sobretudo pela valorização dos premiados que ganharam ontem à noite.

Prémios Sophia 2022

Na verdade, acho que ganhámos todos! ‘O Último Banho’ e ‘Bem Bom’ eram os mais nomeados para os Prémios Sophia 2022, mas acabaram por se impor grandemente, talvez apenas dois filmes, que se tornaram, os grandes vencedores-surpresa da noite. São duas excelentes obras, que definem bem, o prestígio, qualidade e diversidade do cinema português da actualidade: a longa metragem de ficção ‘O Último Banho’, de David Bonneville — tinha 13 nomeações — é o Melhor Filme Português de 2021 e ganhou ainda, Melhor Argumento Original, Melhor Direcção Artística e até passou um pouco despercebida na sua estreia, altamente prejudicada pois foi num pequeno período de pausa entre os confinamentos provocados pela pandemia. ‘O Último Banho’ é a primeira longa-metragem deste portuense David Bonneville, que realizou entre outras, a curta ‘Cigano’. Iniciou a sua carreira como assistente do realizador Manoel de Oliveira e mais tarde do artista britânico Douglas Gordon. É um filme de emoções fortes, que tem como ponto de partida uma história verdadeira: a do nascimento quase milagroso de um bebé de sexo masculino, numa zona pouco povoada e envelhecida no interior de Portugal. Josefina (Anabela Moreira, numa tremenda interpretação), está prestes a fazer os votos perpétuos de freira, mas tem de regressar à aldeia onde cresceu, para o funeral de seu pai. Aí reencontra o sobrinho (Martim Canavarro), abandonado pela mãe (Margarida Moreira), e é então compelida a adoptá-lo ea tomar conta dele. O regresso à casa de família transporta-a para um passado sombrio e para uma realidade de solidão e intimidade. A adolescência do sobrinho e a profunda religiosidade, o perigo de pecado e a ameaça de regresso da irmã, são desafios que tem de enfrentar num misto de estoicismo, religiosidade e desejo. Em ‘O Último Banho’, o realizador David Bonneville tem como seu ponto de partida a juventude e a atracção num lugar despovoado, com a religião e a tradição ainda muito enraizada e presente, nas populações das muitas aldeias do interior do nosso País. Vamos ver aliás essas duas referências e temática, em dois filmes portugueses que vão estrear em breve: Alma Viva, de Christèle Alves Meira e ‘Restos do Vento’, de Tiago Guedes. Não chega a ser o ‘filme-escândalo’, mas anda lá por perto, no que diz respeito às contradições e polémicas, entre os dogmas da igreja católica e as questões da sexualidade e desejo.

’A Metamorfose dos Pássaros’, de Catarina Vasconcelos, um dos filmes portugueses mais premiados internacionalmente nos últimos anos, volta a vencer 4 prémios (Melhor Documentário, Melhor Realização, Melhor Som e Melhor Montagem), das 6 categorias, para que estava nomeado. É igualmente outra das grandes surpresas dos Sophia 2022, porque se trata de um filme-ensaio-documental, que na maioria das vezes seria até contra-corrente, em relação  a este tipo de prémios. Mas afirmou-se e bem, pois ‘A Metamorfose dos Pássaros’ é um filme bastante original concebido como uma história de memórias familiares, feita através de um registo pessoal e afectivo. O filme pode-se dizer que tem duas partes: na primeira Catarina Vasconcelos conta a história dos seus avós Henrique (enquanto oficial de marinha embarcado) e Beatriz (a mulher que ficou em casa a tratar dos filhos), através de cartas e correspondência diversa entre ambos, até chegar à história do seu seu pai, Jacinto — que na verdade se chama Henrique, como o pai — o mais velho de seis irmãos, que perdeu a mãe subitamente; a segunda parte do filme expressa uma espécie de (re)encontro afectivo da realizadora, com o seu pai e com as memórias anteriores da sua família, e sobretudo da avó ‘Triz’ que não conheceu, logo a seguir também ao falecimento precoce por doença da sua propria mãe. Catarina Vasconcelos oferece-nos assim a história da sua família — igual a tantas outras com as suas alegrias e dramas — mas num filme íntimo e emocionante, num registo entre o documentário e a ficção, como se fosse uma espécie de romance a várias vozes e onde o luto e perda fundem-se numa narrativa poética, difusa e sensível, à custa de belíssimas imagens (e uma extraordinária montagem) que acompanham as doces palavras de amor.

VÊ TRAILER DE ‘A METAMORFOSE DOS PÁSSAROS’

‘Terra Nova’ de Artur Ribeiro, concebido também para uma versão em episódios para televisão, foi igualmente um dos os segundos filmes mais premiados, ao vencer uma boa parte da categorias técnicas: Melhores Efeitos Especiais/Caracterização, Melhor Fotografia e também Melhor Actor para Miguel Borges. O actor, com quatro nomeações em edições anteriores, já tinha conquistado pela primeira vez o prémio de Melhor Ator em 2017, pelo filme ‘Cinzento e Negro’, de Luis Filipe Rocha. ‘Terra Nova’ é um grande filme de aventuras, no melhor dos sentidos, pois acompanha a viagem de um lugre bacalhoeiro (um navio piscatório), pelas águas geladas do Labrador, ao longo de um mau ano de pesca. Como o bacalhau é escasso, o Capitão Silva, interpretado por Virgílio Castelo, decide navegar até à Gronelândia, rota nunca antes navegada pelos lugres. Enquanto a tripulação luta contra tempestades e o frio do Atlântico Norte, seguimos o drama de Albino (Pedro Lacerda, outra grande interpretação), um pescador que já foi primeira-linha, mas caiu em desgraça após um naufrágio, e é agora considerado “má-sorte” para os lugres onde embarca. Albino tenta proteger Miguel (Miguel Partidário), um jovem órfão que o admira, apesar do antagonismo e reacção de alguns dos pescadores, do navio. Com as dificuldades crescentes da viagem, o conflito intensifica-se e Albino receia que se o mar não o matar, talvez um deles o faça, se ele não os matar primeiro. Apesar do Capitão liderar o navio com pulso de ferro, este não consegue evitar um motim que comprometerá o objetivo da viagem. Lançando assim, homens contra homens, num conflito que surpreende Bernardo (Vítor D’Andrade), um médico que faz a sua primeira viagem e que se encontra, dividido entre a solidariedade para com os pescadores e o respeito pela autoridade do Capitão. Um filme que é uma espécie de síntese da série ‘Terra Nova’, apresentada na RTP, realizada por Joaquim Leitão, que marcou o centenário do nascimento de Bernardo Santareno em 2020, e uma excelente proposta de trazer para o grande ecrã o que poderá ser considerada a última epopeia trágico-marítima de Portugal: a faina maior ou a pesca do bacalhau.

VÊ TRAILER DE ‘TERRA NOVA’

A vertente mais popular, mas não menos interessante, do cinema português estava bem representada por ‘Bem Bom’, de Patricia Sequeira — a última e notável filme-homenagem às ‘Doce’, à banda feminina dos anos 80, tinha 13 nomeações — mas não foi além da vitória em apenas duas, aliás merecidas e as que mais se destacam: Melhor Guarda-Roupa e Melhor Maquilhagem/Cabelos. Contudo, as surpresas não se ficaram por aqui, já que ‘Sombra’, de Bruno Gascon, — mais um filme inspirado no estranho caso do desaparecimento do miúdo Rui Pedro, em Paredes, em 1998, ainda não resolvido —  que contava com oito nomeações, venceu nas duas categorias de interpretação feminina: Melhor Atriz (para Ana Moreira, sendo que a favorita era Anabela Moreira pela sua fabulosa interpretação em ‘O Último Banho’) e Melhor Atriz Secundária (um grande regresso de Ana Cristina Oliveira); e ‘Serpentário’, de Carlos Conceição — um filme protagonizado por João Arrais, num rapaz que vagueia por uma paisagem africana pós-apocalíptica, em busca do fantasma da sua mãe que venceu na categoria de Melhor Banda Sonora Original, aliás notável, composta por Hugo Leitão. João Nunes Monteiro, o vencedor do Sophia de Melhor Ator em 2021 (por Mosquito’, de João Nuno Pinto), voltou a ser premiado com mais um Sophia, desta vez na categoria de Melhor Ator Secundário, pela sua interpretação em ‘Diários de Otsoga’, de Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes. João Nunes Monteiro tornou-se assim, no primeiro actor a vencer dois Sophia de interpretação em dois anos seguidos.

VÊ TRAILER DE ‘BEM BOM’

A cerimónia que teve como tema a celebração do Cinema Português de Animação, teve ainda vários momentos importantes não só de revisão da memória histórica dos filmes do passado, mas também do presente e futuro — mesmo ao nível da animação publicitária, com um brilhante medley dos vários spots infantis da RTP, que então convidavam, as crianças a ir dormir — com algumas co-produções internacionais em que estão envolvidos os animadores portugueses; mas sobretudo com a merecida homenagearam a Abi Feijó, uma figura que é uma das grandes referências do cinema de animação em Portugal: foi galardoado com um Prémio Carreira. O discurso do cineasta, produtor e professor foi efectivamente, um dos momentos mais emotivos da noite do Estoril. A cerimónia ficou igualmente marcada, como tem sido já hábito nas edições anteriores, pelos discursos políticos de apelo ao apoio e reforço do cinema português, tanto por mais financiamentos públicos, como pela valorização e reconhecimento dos espectadores, em relação a um cinema que continua a ser, um acto de resistência e afirmação cultural, como o destacaram e bem, a actriz Beatriz Batarda e o realizador Marco Martins, antes da entrega do Prémio de Melhor Filme. Apesar da crise de espectadores nas salas que tem afectado o cinema mais autoral, inclusive o cinema português, esta cerimónia dos Sophia 2022, vem demonstrar que, este permanece bem vivo e recomenda-se! 

VENCEDORES DOS PRÉMIOS SOPHIA 2022

Melhor Filme
O Último Banho

Melhor Realização
Catarina Vasconcelos, por A Metamorfose dos Pássaros

Melhor Argumento Original
David Bonneville e Diego Rocha, por O Último Banho

Melhor Ator
Miguel Borges, em Terra Nova

Melhor Atriz
Ana Moreira, em Sombra

Melhor Ator Secundário
João Nunes Monteiro, em Diários de Otsoga

Melhor Atriz Secundária
Ana Cristina Oliveira, em Sombra

Melhor Documentário
A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos

Melhor Direcção de Fotografia
Luis Branquinho, por Terra Nova

Melhor Montagem
A Metamorfose dos Pássaros

Melhor Som
A Metamorfose dos Pássaros

Melhor Banda Sonora Original
Hugo Leitão, em Serpentário

Melhor Direcção Artística
O Último Banho

Melhor Efeitos Especiais/Caracterização
Terra Nova

Melhor Guarda-Roupa
Bem Bom

Melhor Maquilhagem e Cabelos
Bem Bom

Melhor Curta-Metragem de Ficção
O Lobo Solitário, de Filipe Melo

Melhor Curta-Metragem de Documentário
Eunice ou Carta a uma Jovem Actriz, de Tiago Durão

Melhor Curta-Metragem de Animação
A Mulher do Médico, de Bruno Simões

Prémio Sophia Estudante
Punkada, de Gonçalo Ferreira U.L.H.T.

Melhor Série/Telefilme
Glória

Prémio Carreira
Abi Feijó

Melhor Trailer
A Metamorfose dos Pássaros – Autoria de João Braz

Melhor Cartaz
Paraíso – Autoria de Constança Villaverde Rosado e Cristina Reis

Melhor Filme Europeu
Mais uma Rodada, de Thomas Vinterberg

JVM

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