“As Melusinas à Margem do Rio”, da realizadora luso-luxemburguesa Melanie Pereira. ©Red Desert Films

“As Melusinas à Margem do Rio” — Análise | Uma história de sereias reais

Poético e político, “As Melusinas à Margem do Rio”, da realizadora luso-luxemburguesa Melanie Pereira mistura contos de fadas, memórias de infância e experiências de outras filhas de imigrantes no Luxemburgo. Um documentário íntimo, sensível e necessário sobre identidade, pertença e reconciliação. Estreado no DocLisboa 2023, chega agora às salas de cinema.

Quando as sereias são jovens mulheres como tantas outras: são identidades partidas, nos rios que as levam e continuam na eterna busca por um lar. Estes são os temas tratados neste documentário criativo “As Melusinas à Margem do Rio”, de Melanie Pereira, uma filha de imigrantes portugueses nascida e criada no Luxemburgo. Há filmes que de facto, não se veem só com os olhos, sentem-se com a pele e com o coração.  A primeira longa-metragem da realizadora luso-luxemburguesa é uma dessas obras. É cinema de água, de vozes e silêncios, feito de fragmentos que juntos constroem algo maior: um retrato íntimo, colectivo e profundamente feminino da experiência de quem nasce entre mundos e não sabe muito bem onde pertence.

Melanie Pereira
A realizadora Melanie Pereira, questiona-se no filme. ©Red Desert Films

Um documentário-poema

Depois de nos ter emocionado com “Aos Meus Pais” (2018), em que contava a história da emigração dos seus progenitores portugueses para o Luxemburgo, Melanie vira agora a câmara para si própria e para outras mulheres como ela em “As Melusinas à Margem do Rio”. Filhas de imigrantes, nascidas no Luxemburgo, mas com raízes espalhadas por Portugal, Congo, Espanha, Bósnia ou Uganda. Cresceram numa terra que nunca as viu como suas, mesmo que tivessem nascido ali. E é nesse espaço entre a origem e o destino, entre a memória e a pertença, que este documentário-poema se inscreve.

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A sereia, o rio e a pergunta que nunca passa

Tudo começa com a lenda luxemburguesa da Melusina, uma sereia mágica que desapareceu no rio Alzette depois de ser traída, pela promessa do marido. Conta-se que volta a emergir de sete em sete anos, com a chave dourada da cidade na boca. Melanie pega nesta imagem mitológica — uma das mulheres-fatais da literatura romântica europeia —  e transforma-a num espelho das jovens que filma. E da sua própria busca. Porque não é Melusina que procuram, são elas próprias. Num registo híbrido, entre o documentário sensível e a ficção simbólica, “As Melusinas à Margem do Rio” mistura conversas francas com imagens poéticas: amigas em vestidos esvoaçantes que caminham por florestas, que flutuam em barcos ou partilham banhos, como se estivessem a tentar diluir, na água, as fronteiras entre países, línguas e identidades.

As Melusinas à Beira do Rio
Uma mistura de conversas francas com imagens poéticas. ©Red Desert Films

Um filme de escuta e de cura

Há também algo de profundamente terapêutico na forma como Melanie Pereira, se aproxima das suas amigas: Ana Filipa, Melina, Shanila e Amelia. As conversas que partilham não têm pressa. São feitas de pausas, de memórias familiares, de perguntas difíceis como “De onde és, afinal?”. O que para muitos é uma pergunta banal, mas para elas é um poço sem fundo. “As Melusinas à Margem do Rio” não procura respostas fáceis. Antes, tenta habitar o desconforto, o desenraizamento, a sensação de nunca se ser “de lá”, mesmo quando se nasceu lá. A segurança económica e o conforto social do Luxemburgo não apagam o sentimento de exclusão cultural. E é nesse desfasamento que nasce a dor, mas também a arte e a simplicidade da realizadora.

AS Melusinas à Beira do Rio
Imagens de videos-caseiros e fotografias da infância. ©Red Desert Films

Imagens de arquivo e política do íntimo

Pelo meio, vemos imagens de videos caseiros dos anos 90 e 2000, fotografias, vídeos da(s) infância(s) delas. Fragmentos de vidas que pareciam banais, mas que agora revelam camadas de silêncio, ausência e saudade. Melanie entrelaça tudo isto com uma delicadeza impressionante. O resultado é um filme profundamente pessoal, mas que ressoa em qualquer um que tenha vivido (ou herdado) o exílio. “As Melusinas à Margem do Rio” não é um documentário “explicativo”. Não há gráficos, nem dados. Há escuta, há vulnerabilidade, há verdade. É essa política do íntimo que o torna urgente e belo, que faz deste filme não apenas não e só um documentário. É uma carta de amor à incerteza, à memória e à procura de um lugar onde possam finalmente dizer: “Aqui, talvez, possa ser de facto a nossa casa.”

JVM

“As Melusinas à Margem do Rio” — Análise | Uma história de sereias reais
  • José Vieira Mendes - 75

Conclusão:

Vencedor do Prémio HBO Max no DocLisboa 2023 e do Prémio de Melhor Documentário Nacional no Porto Femme 2024, “As Melusinas à Margem do Rio”, da luso-luxemburguesa Melanie Pereira estreia agora e finalmente nos cinemas portugueses. E merece ser visto, com tempo, com atenção, com empatia; diga-se até reflectindo um pouco nas causas dos resultados eleitorais da imigração portuguesa, nas ultimas legislativas. De facto, além de uma história de mulheres, é um filme sobre o que significa ser estrangeiro no próprio país. É um filme, sobre identidades líquidas, que escorrem entre as mãos, dessas mulheres que, como Melusina, são figuras mitológicas do presente: com um pé em cada margem, com o coração dividido, mas com coragem para mergulhar. 

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Pros

O melhor: Uma obra poética e sensível, que dá voz às filhas da migração com empatia, beleza visual e uma forte carga simbólica. Destaca-se pela escuta, pela intimidade e por um olhar profundamente feminino sobre a identidade e a pertença.

Cons

O pior: A estrutura fragmentária e a aposta na metáfora e na estética podem tornar o filme demasiado abstrato, afastando quem procura maior clareza narrativa ou uma profundidade política mais explícita.



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