Bestas do Sul Selvagem, em análise
“I see that I’m a little piece of a big, big universe. And that makes things right. When I die, the scientists of the future, they’re gonna find it all. They gonna know, once there was a Hushpuppy, and she lived with her daddy in the Bathtub.”
Nem sempre é clara a localização espacial e temporal de “Bestas do Sul Selvagem”. Sabemos apenas que embarcamos numa viagem algures no Louisiana num local potencialmente abalado pelo furacão Katrina. Na verdade, para quê conhecer o acessório? Sabemos que, aos olhos da protagonista, estamos no “mais lindo lugar na Terra”. E isso será suficiente.
É no ponto onde o Homem se confunde com a Natureza que encontramos Hushpuppy. Vive numa comunidade esquecida, a que apelidam de ‘Bathtub’, mas desafiante de uma zona pantanosa separada do mundo por um extenso dique. Corre o risco de ficar órfã uma vez que perdeu a mãe e o destino do seu pai é vacilante. Uma pequena figura humana que, mesmo vivendo muito perto da sociedade tecnológica, prefere viver a selvajaria indomável no “mais lindo lugar na Terra”.
Poderíamos até sugerir que a mente de Hushpuppy e a de todos os habitantes de ‘Bathtub’ está mergulhada em contradições. Para quê viver sob a alçada da pobreza e sonhar com seres ancestrais se no horizonte se encontra um mundo potencialmente mais benigno e onde talvez se descubra o sustentáculo da humanidade?
A verdade é que não há nada de errado com o espírito daqueles habitantes. As bestas primitivas que coabitam no sul selvagem vivem em conformidade com a Natureza e nunca o oposto. Porque acreditam que ela está perfeitamente concebida e que se “algo se estraga, mesmo a mais minúscula parte, todo o Universo se estraga.”
Há portanto um sentimento de apartamento do ignóbil mundo exterior e uma aura que separa a liberdade selvagem, mágica e estulta de ‘Bathtub’ da “prisão” reles onde habitam os seres que no seu quotidiano fazem questão de destruir o Universo.
Benh Zeitlin poder-nos-ia oferecer uma visão economicista da situação que retrata. Tinha material suficiente para conceber uma reflexão exaustiva sobre o perigo da pobreza eminente e o modo como os desastres naturais deterioram mais os povos selvagens do que a dita população civilizada. Mas não o faz.
É evidente que a situação vivida no seio de ‘Bathtub’ é essencialmente originada pelo regime industrialmente capitalista da sociedade. Mas Zeitlin aproveita esse acontecimento para se focar na jornada libertina de Hushpuppy e do seu pai.
Oferece-nos uma visão fantasiosa da infância e da perda da inocência. Elimina perspicazmente da sua equação o logos e percorre o ethos e no pathos do enredo, criando uma atmosfera mais sensível do que inteligível.
Inspirado possivelmente nos contos de fadas infantis, Benh Zeitlin cria o seu próprio fairy tale, tornando Hushpuppy na princesa insubmissa numa jornada que é um retrocesso às origens do ser humano.
É ela a figura central. A câmara enamora-a, persegue-a nas suas aventuras, nas suas amarguras, na sua inocência. Quvenzhané Wallis é o principal veículo para que a simbiose hipnótica que se estabelece entre Hushpuppy e a Natureza seja harmónica e mágica. Mesmo no momento onde a fragilidade emocional de Hushpuppy é posta à prova, sente-se que Wallis tomou um conhecimento completo da sua personagem. Compreendeu que a fragilidade aparente de Hushpuppy merecia não uma lágrima, mas uma ténue exaltação da ingenuidade num enlaço visceral e inspirador.
Tal como o afirmou Richard Corliss para a revista Time, Quvenzhané Wallis é uma pequena força da Natureza. Porque com apenas seis anos de idade (na altura da rodagem) foi capaz de criar uma personagem vigorosa e credível que exacerba um enredo explosivo e poético.
Benh Zeitlin, que aqui assume o papel de realizador, argumentista e compositor, construiu um dos trabalhos mais notáveis dos últimos anos. Não olhemos apenas para suas as opções técnicas e narrativas. O que mais se realça no trabalho de Zeitlin é a enorme competência em construir um indie autêntico.
“Bestas do Sul Selvagem” não é um indie travestido e patrocinado por valores monetários oriundos de grandes estúdios. Basta pensarmos que estamos a falar de atores amadores, de um realizador pouco experiente e de um escasso orçamento vindo maioritariamente de instituições locais. Esta obra que chega aos Óscares com quatro nomeações, depois de uma triunfante passagem por Sundance, é fruto de uma vontade mestra: a vontade de fazer cinema.
Mesmo com todas as limitações, “Bestas do Sul Selvagem” consegue ser exímio até ao nível técnico. A poderosa banda sonora capta as subtilezas da obra, conseguindo combinar em uníssono o caráter selvagem, emocional e aventureiro que se exigia. Uma das melhores, senão a melhor, composição do ano. O mesmo se pode dizer da belíssima fotografia que expõe a Natureza com ousadia e transcendência. É de louvar quando um mero artifício técnico é capaz de criar uma personagem. A Natureza, aqui co-protagonista, exprime-se através dos relatos fotográficos: por vezes belos, outras vezes saturados de destruição.
E se por alguns momentos toda a sua construção possa lembrar o cinema de Terrence Malick, então devemos fazer uma analogia justa. É verdade que “Bestas do Sul Selvagem” possui estilhaços malickianos, mas sua abordagem é divergente. Enquanto Malick se foca no metafísico e existencial, Zeitlin estuda com mais rigor o fantástico e o íntimo.
O que é de facto admirável é que ambos são assombrosos na forma como ostentam a comunhão do ser humano com a Natureza.
Benh Zeitlin foi o trovador. “Bestas do Sul Selvagem” é o seu poema à infância ingénua e às singularidades da vida. É a exaltação do essencial e do puro num retrato fascinante e inesquecível.
DR
Podia tentar explicar o filme “Bestas do Sul selvagem”, mas não serviria para ilustrar as razões pelas quais este filme emociona.
A verdade é que não faltam cenas sombrias, que podemos encontrar várias metáforas sobre a resposta dos seres humanos para situações adversas em geral, sobre a crise em particular, mas a única certeza é que o grande espírito de Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), a sua força interior maravilhosa e essa maneira peculiar de lidar com a adversidade transmite uma energia poderosa que bate no coração com força e que trazemos connosco para além da imagem.