"Amor Eterno" | © Pathé

Cannes em Casa | Amor Eterno (2016)

O cineasta francês de origem vietnamita Tran Anh Hung ganhou o Prémio para Melhor Mise-en-Scène na última edição do Festival de Cannes. Tal reconhecimento aparece no seguimento de uma magnífica carreira que remonta já até aos anos 90, chegando ao apogeu gálico com “La Passion de Dodin Bouffant.” Em celebração da vitória, pensemos no trabalho passado do realizador, com ênfase nas suas recriações da História de França ao invés dos retratos sobre o Vietname que lhe caracterizaram as primeiras fitas. Pensemos em “Amor Eterno,” também conhecido como “Éternité,” estreado em 2016. Trata-se de uma produção de luxo, com Audrey Tautou, Melánie Laurent e Bérénice Bejo nos papéis principais.

No universo cinematográfico de Tran Anh Hung, histórias e enredos são sempre subordinados à atmosfera, ao estilo e estímulo sensorial. Talvez por isso haja tanta gente que não consegue encontrar lugar para si nestas experiências cinematográficas, alienados de uma proposta onde a narrativa não é tão importante como o sentimento desperto pelo remoinho de imagens e sons. “O Odor da Papaia Verde” foi a sua primeira longa-metragem e demonstra bem a abordagem do cineasta, mas o epíteto do engenho aparece de forma mais direta quando Tran fez o salto para histórias divorciadas do seu legado enquanto artista vietnamita.

Quiçá seja a perda de responsabilidade cultural, o transcender de uma necessidade de bem representar um mundo pouco visto nos anais do cinema. Há algum valor que desaparece no advento desta evolução, mas novos valores se levantam. “Eu Venho Com a Chuva” marcou a entrada do realizador numa esfera anglófona, com um frenesim estético capaz de atordoar, intoxicar, inebriar. “Norwegian Wood” abriu os olhos para as possibilidades da adaptação literária e “Amor Eterno” veio perpetuar essa linha criativa. Usando a base sólida de um livro, Tran mais facilmente se deixa levar pelas forças formalistas que lhe regem a obra.

cannes em casa amor eterno
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Por outras palavras, poderá ser mais fácil dar asas à imaginação quando existem fundações estáveis. Sentir-se-á mais liberdade para inventar em termos plásticos num contexto suportado pela narrativa, onde já existe um ponto de acesso fácil para o espetador. É evidente que esse sistema impõe os seus limites, mas denota-se o fulgor na câmara de Tran na grandiosidade de “Amor Eterno.” Parte do jogo depende de uma constante narração em voz-off, tirada diretamente do livro aqui adaptado. Trata-se de “L’Elégance des veuves” escrito por Alice Fernay, uma crónica familiar que acompanha duas gerações do mesmo clã francês no início do século XX.

Para o realizador, este tipo de estudo em descendências e linhas de sangue reverbera com importância pessoal. Acontece que, apesar da nacionalidade francesa, Tran nasceu no Vietname tendo emigrado com os pais ainda na infância, fugindo ao rescaldo da guerra. Essa viagem transcontinental cortou laços de família, cessando o contacto entre o futuro cineasta e seus avós, tios e outros que tais. “Amor Eterno” é um corretivo a tais traumas, uma alternativa que, focando-se na burguesia francesa, pode navegar numa esfera de privilégio histórico onde as angústias do coração tomam precedente acima da luta pela sobrevivência.

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Isso não é uma crítica contra as personagens desta história, somente uma observação. De facto, “Amor Eterno” é uma espécie de exercício em empatia, explorando as interioridades secretas das mulheres definidas pelo papel de esposa e mãe, encarando suas provações com sinceridade e emoção clara. Tudo começa no crepúsculo do século XIX, quando nos deparamos com a jovem Valentine na ocasião do seu noivado. Nesta fase, estamos na presença de uma história de amor idealizado que depressa se torna numa crónica da maternidade em tempos de mudança histórica. No virar do século, perde-se o marido e a Primeira Guerra Mundial muitas mais mortes trará.

Testemunhamos como Valentine gera novo universo afetivo para si mesma e como o perde em tragédias sucessivas, uma vasta prole reduzida a um filho varão e uma filha virada freira, enclausurada num convento que pouco mais tarde se tornará no seu túmulo. Por esta altura já a jovem heroína se tornou em figura secundária na vida dos outros, a meia-idade e viuvez definindo-a enquanto figura perpetuamente enlutada, sua vida uma procissão de nascimentos e mortes. Pelo ramo filial floresce outra família e novas protagonistas se afirmam. São elas Mathilde, a nora de Valentine, e sua prima Gabrielle. Também a elas acompanhamos, desde o noivado à viuvez, ao caixão.

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A voz de Tran Nu Yen Khe, esposa e musa do realizador, impõe-se sobre quase todo o filme, dando a impressão de um mudo narrado. Na sua ausência, composições clássicas dominam a banda-sonora e só muito raramente o silêncio impera, dando oportunidade às personagens para se fazerem ouvir. Ou, por vezes, nem é diálogo que se manifesta, mas o som de um lápis sobre papel, uma mãe tão acostumada a pedir a sobremesa preferida do filho que o faz automaticamente, só percebendo a meio que tendo ele morrido, essa comida não faz sentido. Risca o lápis, rasura, o som da perda expresso em gesto mundano virado ópera sob o comando de Tran atrás da câmara.

Na sua mestria, ele orquestra um caleidoscópio belíssimo em movimento continuo e fluido, como uma canção sem fim. É como uma pintura viva que recorda impressionismos oitocentistas, ou um vanguardismo feito por linhas clássicas. A certo ponto, não é tanto a maquilhagem que define a passagem dos anos, mas a metamorfose da moda, os figurinos de Oliver Bériot traçando a transição da Belle Époque até à mortandade de uns não tão loucos anos 20. A cenografia, assinada por Véronique Sacrez, é ainda mais esplendorosa e a fotografia é um milagre para o qual não há palavras. Ping Bin Lee, lendário colaborador de Wong Kar-Wai e Hou Hsiao-hsien, cristaliza a beleza destas viúvas elegantes, dando proporções míticas às dores comuns dos seus corações, das suas gerações. Este é um cinema de excesso estilístico, mas também é um cinema com o sentimento ao rubro, genuíno e na procura pelo espetador generoso que se deixe envolver no seu feitiço.

“Amor Eterno” está na Rakuten TV e na MEO, disponível para aluguer ou compra.

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